Se quiséssemos resumir a importância e, sobretudo, a genialidade e o espírito lúdico de Rafael Bordalo Pinheiro, melhor do que partir para umas horas de pesquisa virtual algures entre a Wikipédia e outros sites mais sérios ou sisudos, poderíamos pilhar o primeiro parágrafo do texto que João Paulo Cotrim escreveu para “As Caldas de Bordalo” (Arranha-Céus, 2015), o qual se transcreve de seguida.
«Rafael Bordalo Pinheiro não se deixou apenas fotografar nas mais variadas poses, de jovem boémio a pai de família, de artista consagrado a velho libertino. Desenhou-se de todas as maneiras e feitios, voando nas costas de besouros, de macaco pendurado em árvore, de actriz amalucada ou jornalista enforcado, mas na maior parte das vezes vestiu a pele de gato. Gostava de se imaginar ágil e assanhado, mesmo quando se mostrava em versão gorda e pachorrenta. Com naturalidade, mas de modo extremamente original, fez-se todo ele um teatro: encenou-se como protagonista de uma tragicomédia em vários actos, foi plateia e bastidores, pateou-se e aplaudiu-se. E nisto foi único. Se foi capaz de desenhar um rosto para o país, o Zé-Povinho que ainda hoje se usa a torto e a direito, ele próprio não terá sido tão típico assim.»
Para Bordalo Pinheiro, a definição de humor (e a de caricatura) – as palavras são suas – será «o mesmo que pregar um prego no estuque novo de uma casa, com protesto do senhorio. Caricatura é estragar o estuque de cada um com protesto do senhorio.»
Bordalo Pinheiro foi um homem que teve um considerável percurso no universo da maçonaria, uma activa beneficência e uma militância em várias causas, sendo notório o seu espírito visionário: em 1872 publicou o primeiro álbum português de banda desenhada; um ano mais tarde, publica “No Lazareto”, narrado na primeira pessoa, antecipando uma das mais dinâmicas invenções da BD contemporânea – a autobiografia.
Fora do campo das publicações, Bordalo Pinheiro montou casa e fábrica nas Caldas da Rainha na década de 1880. Para lá das figuras típicas e humoradas, que têm como exemplo maior o eterno Zé-Povinho, nasceram – ainda da introdução de João Paulo Cotrim – «jarras que desafiavam a gravidade, cartolas com luvas, pratos com bacalhaus, púcaros com sapos, azulejos e inutilidades várias, bules em forma de couve, lagostas, andorinhas que ainda voam.»
Isabel Castanheira é uma assumida devota da figura e personalidade de Rafael Bordalo Pinheio. A autora manteve, na Gazeta das Caldas e durante oito anos – entre 2005 e 2013 -, crónicas regulares sobre Bordalo, onde reconstituiu e materializou o espírito dos lugares por onde o artista passou e gravou a sua marca na cidade das Caldas da Rainha.
Crónicas que, agora, resultaram em “As Caldas de Bordalo”, um ambicioso e bem-sucedido projecto gráfico que, a partir dos textos de Isabel Castanheira, recria o grafismo e o formato das publicações lançadas por Bordalo Pinheiro na sua época, ao mesmo tempo que as reinterpreta apresentando 89 passos – ou propostas – para a descoberta da obra de Bordalo Pinheiro numa cidade que foi a sua casa e lugar de muitas experiências e devaneios criativos.
Estamos diante de um objecto gráfico de grande monta, um excepcional trabalho de pesquisa, uma homenagem muito pessoal da autora a «um homem que gozou a vida e e os seus prazeres, que mostrou ser adversário implacável com os seus inimigos, leal com os amigos, que amou, sofreu e chorou e que a respeito de tudo soube rir e fazer rir». Sem dúvida uma das mais belas e fascinantes edições nacionais dos últimos anos, dedicada a uma das grandes figuras portuguesas que a História nos legou. Está de parabéns a Arranha-Céus por esta aposta.
2 Commentários
Caro Critico:
Foi com surpresa e grande contentamento que vi o meu livro, feito com a colaboração valiosa do Miguel Macedo e Editado pela Arranha Céus, integrado no conjunto dos livros distinguidos no grupo dos melhores de não ficção publicados no ano. São factos como este que nos faz gostar do que fazemos e darmos por bem empregues todas as horas a ele dedicadas.
Aceite as minhas saudações e desejos de um bom ano com bons livros.
Isabel Castanheira
Obrigado pelas palavras Isabel, um livro destes merece todo o reconhecimento. Um grande ano de 2016 para si e para os seus projectos.