Contemplando um mapa, podemos olhar com algum distanciamento para o espaço australiano. Oscilando entre a condição de país ou de continente, é natural que nos traga à memória animais exóticos como cangurus, coalas ou tubarões a devorarem as pernas a bravos e destemidos surfistas.
Não raras vezes, ao entrarmos numa livraria deparamo-nos com obras de escritores australianos mesmo que não estejamos ao corrente da sua nacionalidade: Richard Flanagan, Colleen McCullough ou David Malouf partilham a nacionalidade com o singular Peter Carey.
Peter Carey é um australiano especial, que trocou a sua Austrália natal e distante do resto do Mundo pelo epicentro cultural da cosmpolita Manhattan, onde tudo acontece nas sombras dos seus arranha-céus.
“Amnésia” (Gradiva, 2015) tem um início à semelhança de um filme de ficção científica: uma jovem australiana, com o apoio de alguns cúmplices chegados, desenvolve um vírus informático cujo intuito consiste em abrir as portas de algumas prisões de alta segurança, nos Estados Unidos da América ou em prisões que estivessem sob a tutela americana noutros países. A partir daqui, a trama está lançada. É necessário defender a jovem responsável por este vil ataque aos norte-americanos, impedi-la de ser extraditada, condenada e de ter um triste resto de vida.
Acontece que os ancestrais da responsável por tal ataque – a jovem Gabrielle Bailleux de seu nome – olham para este acto heróico como uma retaliação a acontecimentos marcantes no seio da sua família, aquando da intervenção de soldados americanos na Austrália algumas décadas antes – a avó de Gabrielle tinha sido molestada por um marine nos subúrbios de Melbourne.
Recrutado para defender Gabrielle e salvá-la da guilhotina, surge então na história o jornalista Felix Moore. Outsider, com uma vida pessoal perturbada por dívidas onde é constantemente salvo por amigos bem colocados na vida politica, cabe-lhe investigar o passado dos Bailleux e assim justificar o golpe de Gabrielle. A função de Moore seria apenas uma: transformar uma hacker perigosa numa figura que merecesse a benevolência – e, porque não, a admiração de todos os australianos. Essa árdua tarefa é-lhe confiada pelo poderoso Woody Townes, um velho amigo dos Bailleux que não olha a meios para atingir os fins. Além disso, o próprio Felix Moore tinha sido um amigo muito próximo de Celine Bailleux, a mãe de Gaby, nos idos tempos de liceu. Sem saber como irá subsistir financeiramente num futuro próximo e perto de perder a mulher e as filhas, Moore não tem como declinar o pedido do seu camarada.
Nesta densa obra – uma publicação de 450 páginas -, Peter Carey inclui vários elementos que tornam o enredo complexo, obrigando o leitor a uma concentração muito rebuscada para não perder o fio condutor de toda a história. Moore acaba por ser constantemente sequestrado e levado para sítios remotos, acompanhado de um gravador – aliás, no próprio livro, Moore é mesmo substituído por um turbilhão de vozes saídas de cassetes – e de uma máquina de escrever para poder elaborar uma peça que salvasse Gaby, mesmo que para isso o amargo escritor tivesse a sua vida constantemente em risco.
Gaby – uma personalidade vincada e extremamente determinada -, porém, não parece valorizar o que Moore tenta fazer para a salvar, vivendo também num constante desdém e numa relação oscilante com a mãe, a neurótica Celine, e o pai, Sando, um deputado Trabalhista em ascensão com quem Gaby entra facilmente em rota de colisão. Muito mais fácil era a relação com Frederic Matovic, um jovem oriundo de outra família disfuncional, com quem Gaby ingressou num sub-mundo da internet e da programação informática. No entanto, a escrita de Carey leva-nos a sofrer de uma espécie de “Síndrome de Estocolmo”, levando o leitor a possuir uma sólida empatia por Gabrielle.
Neste romance de Peter Carey, o escritor australiano torna a vincar o seu estilo narrativo: as personagens são descritas com precisão, onde abundam figuras de estilo próprias do autor, não sendo difícil imaginar a paisagem urbana e rural que este nos descreve ao longo do livro.
O título da obra assenta como uma luva. “Amnésia” é uma luta de Peter Carey para que os australianos não se esqueçam de todas as figuras mais recônditas da sua política actual, para que continuem a olhar atentos para a força das tecnologias de informação (raro será o leitor a quem não venha à memória a figura de Edward Snowden ou Julian Assange) nos dias de hoje, e para que não deixem de ver a Austrália como um país que anteriormente se submeteu a outras nações – nomeadamente em episódios que remetem para a batalha de Brisbane, em 1942, onde existem fortes indícios de que a CIA terá deposto um primeiro-ministro eleito democraticamente pelos australianos em 1975, residindo aqui a grande envolvência que notabiliza este romance.
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