Nem modernista nos fundamentos nem neo-realista militante, Aquilino Ribeiro (1885-1963), um dos mais notáveis prosadores da língua portuguesa do século XX, ficou com a posteridade comprometida por causa da sua identidade vernacular de beirão e por causa do seu cepticismo natural. Uma injustiça enorme, claro. Aquilino devia ser muito mais lido, hoje. Devia ser muito mais editado. Devia ser muito mais discutido. Convenhamos, Aquilino Ribeiro escrevia como um imortal.
“Alemanha Ensanguentada” (Bertrand Editora, 2015) é pura literatura de viagem, do género clássico. Tem de Homero a tendência fatalista e a visão crua, de Heródoto a substância da realidade e o sentido crítico e, de Jonathan Swift, o bom senso e a predisposição. O humanismo, claro, é moderno, mas a virtude da profecia, abundante nestas páginas, é de uma antiguidade sagrada. Não porque ler Aquilino seja viajar para trás. Trata-se sobretudo de transcender a linha do tempo. E esta é uma boa maneira de definir a grande literatura.
Republicano ou anarquista, envolvido directa ou indirectamente no regicídio de 1908 (essa conversa não vem agora para esta conversa), a verdade é que Aquilino Ribeiro acaba por ser condenado às alegrias do exílio: vai estudar para a Sorbonne onde conhece a alemã Grete Tiedemann, com quem irá casar em 1913. No desequilíbrio do eixo Paris-Berlim, estabelece-se nele um claro balanço teutónico, e o autor de “Quando os Lobos Uivam” nunca percebeu as razões dos aliados em 1914. Nem concordou com participação portuguesa na I Guerra Mundial.
Depois de ter conhecido bem a Alemanha antes da guerra, Aquilino volta à pátria da sua mulher em 1920 e este é o diário desse regresso. Estruturado por capítulos breves mas extremamente poderosos – na prosa e na substância -, o livro é um périplo sombrio pelas cidades, pelas aldeias, pelos cemitérios e pelos campos de prisioneiros de uma nação-pesadelo. De uma Alemanha humilhada, esfomeada, espoliada, impura. De joelhos. E, ainda assim, ameaçadora.
Logo na fronteira, Aquilino detecta o mal-estar com a derrota e o mal viver com a arrogância de belgas e ingleses em território alemão. Depois, já em Berlim, faz notar que os dois milhões de mortos não têm consequência na demografia da cidade, que está à pinha. E que definha entre a grandeza imperial e a mais pungente miséria. Oficiais das altas instâncias públicas trocam duas fatias de pão por um favor ou por uma cortesia. Não há leite para as crianças e não há carvão para aquecer as casas, e tudo o resto escasseia e encarece desmesuradamente. A multidão urbana é esquálida e pálida, feita de silhuetas subnutridas e trémulas, verdadeiros e falsos inválidos da guerra (consoante são pedintes honestos ou profissionais), mães aflitas que percorrem as ruas na vã expectativa de encontrarem sustento para seus filhos; gente e mais gente que veio da desesperança das aldeias e das colónias e dos territórios ocupados para o terrível engano de Berlim, onde até os outrora orgulhosos, espadaúdos e numerosos soldados do kaiser são agora pequenas sombras famélicas e envergonhadas, em número insignificante.
Todo o livro faz luto pela Alemanha, mas os primeiros capítulos são especialmente soturnos. Só que esta soturnidade vem embrulhada na prosa operática e no léxico vernacular de Aquilino Ribeiro. Os esfomeados são malcomidos. Uma vilania é uma sevandijaria. Os lábios das crianças chilream com a fome. As paredes metralhadas têm bexigas. A paz de Versalhes não foi forjada, foi furjicada. E o céu de Outubro na Prússia é assim descrito: “Um sol muito zarolho e indefinido boia por detrás da vidraça fumada do céu outoniço. Não dá luz nem calor. É um lampião de azeite.” A escrita é exuberante sem prejuízo do pudor. É eloquente mas não é retórica. E tem a qualidade técnica da alta resolução. O autor é incansável na arte fotográfica: no retrato dos personagens como na panorâmica paisagística, é dado ao leitor todo um quadro sensorial que promove o necessário mergulho noutra dimensão do espaço-tempo.
Mas, muito para além do sofrimento, Aquilino também regista o profundo sentimento de revolta que grassa generalizadamente, ao qual será consequente a ideia de vingança. Os alemães guardam as suas armas para “o dia do desforço”. Espingardas, metralhadoras, granadas e lança-chamas estão em pausa mas, apesar da pressão dos Aliados e das tentativas do governo, não são entregues às autoridades. A humilhação a que Versalhes condenou o teutão comporta riscos e esses riscos implicam, por diversas vezes, conclusões proféticas.
A dado passo, Aquilino Ribeiro antecipa a ascensão de Adolf Hitler, dois anos antes deste assumir a liderança do que viria a ser o Partido Nacional Socialista e treze antes de chegar a chanceler: “O povo germânico tem necessidade de ocupar a imaginação com alguém ou alguma coisa que pelo tamanho e prestígio personifique o extraordinário. Mas onde está essa figura de proa? O Kaiser é o bronze partido à martelada de que fala Nietzsche. Hindemburgo não passa de um gigante com pescoço de toiro, bastante rebarbativo e intratável, de ignorância enciclopédica para tudo o que não seja a arte da guerra. Lundendorff, inteligência mais dúctil e penetrante; verga sob a responsabilidade da derrota. Mackensen, o invencível, não soube criar idólatras. Se aparecer um aventureiro, resoluto e de maus fígados, que se confie numa vaga e apocalítica ideologia, que bata o pé ao vencedor, misto de Anticristo e de Lohengrin, tem povo.”
A relação dos alemães com os deuses transforma-se, também e perigosamente, pela força do que se sente como uma injustiça dos céus para com um povo devoto; até porque “ao contrário do judeu de alvar ingratidão para com as divindades, o germano era agradecido.”Esta frase arrepia, mas é completamente característica do potencial adivinhatório que encontramos na análise de Aquilino.
À conversa com o carismático e lapidar capitão Von Herz, que odeia o Kaiser por ter sido um líder excessivamente pacifista (!), o autor confirma as suas suspeitas de que o problema alemão não ficou de todo resolvido com a derrota na Grande Guerra, e que fica todos os dias mais complicado com a gestão draconiana que os aliados fazem da vitória. Tanto mais que a orfandade a que a fuga do Kaiser condenou os alemães pode ser rapidamente compensada por um tiranete de trazer por casa.
Mas, em diálogo com Tcheliabinsky, o sargento russo cativo num dos campos de prisioneiros criados em território alemão para os rendidos da Batalha de Varsóvia (uma tentativa falhada de invasão da Polónia pelos sovietes em 1919, de que hoje pouco se fala), Aquilino sublinha também a ameaça de Moscovo: Tcheliabinsky, desassombrado e fanfarrão, assume que os objectivos estratégicos do politburo passam pela sovietização de toda a Europa e pela constituição continental de um império do proletariado, cuja massa crítica contribuiria decisivamente para o sucesso da mãe de todas as batalhas – a guerra à América. E a Alemanha, espoliada e ajoelhada pelo grande capital, seria naturalmente a nação locomotora deste movimento imparável rumo aos amanhãs cancenotistas.
Conhecedor profundo da história da Alemanha e do contexto político à altura da sua visita, Aquilino Ribeiro escalpeliza muito claramente os dilemas e os falhanços da República de Weimar, que se encontrou invariavelmente entre o mandato brutal de Versalhes e as ambições geo-estratégicas de Moscovo. Não é preciso ser um perito em história contrafactual para perceber que a Alemanha, nos anos imediatos à conclusão da guerra, esteve a um passo da revolução marxista-leninista e que, como em muitas outras situações, as coisas podiam ter ocorrido de forma completamente diferente. Na visão do grande prosador de Sernancelhe, a república de Weimar, ideologicamente depauperada e condenada ao compromisso, foi servil com os aliados mas nunca recebeu destes a gratidão devida por evitar o comunismo nos territórios germânicos.
“Os Navios, cinco mil locomotivas, cento e cinquenta mil vagões, toda a espécie de armas, obras de arte dos grandes mestres, uma parte de Schleswig, a Alsácia de cepa germânica, as comunas de Eupen e Malmedy, a província de Posem, o hinterland de Danzig, condicionalmente a bacia do Sarre, as entregas fabulosas de carvão, a ocupação do Reno custeada pela Alemanha à razão de 17 milhares de marcos ao nao, as colónias todas, talvez a Silésia, mais agulhas e alfinetres, e ainda uma indemnização de quantitativo a fixar, hiperfabulosa. (…) Não sei, mas estou em crer que da paz forjicada tão torpemente em Versalhes ou sai uma Alemanha com todos os instintos da fera que foi traquejada, pronta a dar o salto no momento oportuno, ou uma Alemanha que há-de acabar por se entregar a Lenine de alma e coração.”
Aquilino Ribeiro é um germanista confesso – o que não deixa de ser curioso, para alguém que tinha sido preso no seu país por acusações de anarquia – e a sua visão é muito crítica dos aliados. Na maior parte dos casos, por maioria da razão que a história lhe veio dar, em outros por ignorância das realidades históricas, das quais estava demasiado próximo no tempo e no afecto para fazer uma leitura objectiva. Aquilino acredita que a Inglaterra queria a guerra quando hoje sabemos bem que não foi esse propriamente o caso. Edward Grey, o célebre ministro do Foreign Office e um dos principais actores do verão louco de 1914, acabou de facto por contribuir para o desenrolar catastrófico dos acontecimentos. Mas, essencialmente, por não querer a guerra, e por nem ser capaz de imaginar que os alemães fossem realmente desejá-la.
“Alemanha Ensanguetada” é uma obra geralmente apresentada como a crónica de uma viagem à Alemanha quando, na verdade, são duas as viagens que relata. Em 1927, Aquilino faz o sinistro roteiro dos campos de batalha do nordeste francês e acrescenta, a este já pesado diário, as insustentáveis toneladas desses dias. O registo oscila entre a mestria descritiva e o tom necessariamente lúgrube e a coisa vai fluindo mais ou menos assim: “Raro se lobriga ramo nos horizontes, a metralha ceifou as árvores e as que restam são mais sinistras que justiçados abandonados aos corvos no viso dos outeiros.“ Ler Aquilino Ribeiro é sempre gratificante. Até quando ele caminha sobre cadáveres.
Por fim, em Lacouture, o autor confronta-se, horrorizado, com o seu país e a sua língua. Ergue-se neste campo fúnebre, adubado de sangue português, um desastrado monumento (inscrito com um canto do Camões, barbaramente traduzido) e que presta rendida homenagem de Portugal à França. Na presença póstuma da heroicidade lusitana, o governo português decidiu agradecer aos franceses por serem franceses, e não aos seus soldados por terem morrido a defender a França. E isto, para epílogo, não está nada mal.
José Gomes Ferreira dizia de Aquilino que sabia mentir a verdade. “Alemanha Ensanguentada” está carregada de verdades. E algumas delas duram para sempre. Ficam para a grande mentira que é a história.
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