Imaginemos, por um momento, que Ulisses, vindo de Tróia, acabava por nunca conseguir voltar a casa. E que Homero não só informava o leitor desse facto, no correr da Odisseia, como faria ele mesmo parte da acção, de forma a poder impedir esse regresso. O nosso herói perder-se-ia no labirinto marítimo da literatura mediterrânica para sempre e Penélope acabaria por desposar um dos pretendentes que, durante dez anos de paciente espera, lhe infestaram o domicílio com abusos gastronómicos e insinuações de matrimónio. Bem-vindo à literatura de Enrique Vila-Matas.
Desta feita, o premiado, criativo e prolixo autor espanhol, que tem um acentuado gosto pela difícil arte da metaficção, apresenta-nos “A Viagem Vertical” (Assírio & Alvim, 2015), e o mínimo que se pode dizer é que se trata, de facto, de uma Odisseia ao contrário. Aqui não há regresso. A narrativa não é, obviamente, circular, e o seu movimento rectilíneo é descendente, tanto na dimensão geográfica como ontológica. A travessia inicia-se em Barcelona, hesita rumo ao sul – passando pelo Porto -, mas deixa-se cair inevitavelmente em Lisboa, depois na Madeira e, por fim, na Atlântida, esse “Abismo do Fundo“. É um caminho de sentido único, que parte do desespero para chegar à morte.
A história é prosaica: um septuagenário catalão, Federico Mayol, que se vê abandonado pela mulher, ignorado pelos filhos e amargurado pela ausência de um qualquer significado para a vida, entra em queda vertiginosa. Tudo o que construiu – a família, a companhia de seguros, a fortuna e o legado de político nacionalista – não tem agora qualquer consistência. Não passam de memórias insubstanciais. A arrogância do homem sem estudos que consegue triunfar nos negócios conduziu-o apenasmente ao drama da ignorância de tudo. A interrupção brutal da sua existência, quando ainda jovem, pelos martírios da Guerra Civil, impossibilitou-lhe o acesso à academia e o orgulho de, ainda assim, ter conseguido se um vencedor material. Algo que lhe pesa agora como uma impreparação do espírito. Sem conhecer o belo, não temos consolação possível e, por isso, o nosso herói é um mero jogador de poker no casino do fim.
É talvez porque não tem nada a perder, nem já tempo para ganhar seja o que for, que se decide ao percurso vertical. A viagem nem sempre é confortável, pacífica e significante. São vários os incómodos, as altercações, as faltas de respeito e os fenómenos poltergeist – a televisão transforma-se num oráculo grego com extrema frequência. Mayol quer cumprir aventuras, mas é um cínico; quer fazer amigos, mas zanga-se muito com toda a gente; quer abrir horizontes, mas fecha-se na sua conchinha-réstia de amor-próprio; às vezes parece um homem atirado aos trambolhões pelas escadas do ridículo abaixo; outras é um assalto de dignidade que dificulta o caminho. É que o destino de um homem não é assim tão fácil de encontrar.
Porém, o que faz deste romance uma obra única é a forma como o argumento é articulado. O narrador fará parte da acção e interrompe-nos a leitura com apartes e indícios, com acasos e confissões, confunde-nos e troca-nos as voltas. Há um tom detectivesco na narrativa que prende e seduz. Mayol é um velho pesporrente e difícil, mas há um certo carinho no trato da personagem que comove e promove a leitura. Mais a mais, Vila-Matas está constantemente a cobrar à literatura o que a literatura deve a Homero, a Cervantes, a Joyce e a Borges. Página sim, página sim, damos com referências, subtilezas e delírios extremamente saborosos, num livro que terá seguramente lugar marcado nas estantes de uma certa biblioteca de Buenos Aires. Ou de Alexandria.
Federico Mayol não regressará, como já foi dito. Mas isso não quer dizer que deixe de encontrar a sua redenção. Apesar do nobre exemplo de Ulisses, não é necessariamente no caminho de volta que se salvam os errantes. Perguntem a Aquiles.
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