Há sensações estranhas na nossa vida, particularmente quando nos confrontamos com as nossas próprias dificuldades em aceitar a possibilidade de existirem pessoas, lugares, momentos e livros perfeitos. Perfeição não no sentido harmónico, pacifico e suavemente colorido, mas sim no sentido do match: algo que nos conduz ao nosso fundo, ao que parece intangível mas que se torna possível, de forma simples e, por isso, única.
Quando este pequeno livro de título “A morte de um apicultor” (Marcador, 2015) nos cai nas mãos, estamos ainda naquele estado de ignorância que antecipa sempre o deslumbramento de uma grande descoberta. Começando pela singela descrição introdutória, o narrador apresenta-nos o apicultor: Lens Lennart Westin, antigo professor primário, reformado antecipadamente por terem demolido a escola da região. Vive da venda das suas abelhas e de alguns biscates. Tem 40 anos, leva uma vida humilde, tem uma pequena horta, um batatal e um cão. Recebe visitas ocasionais de familiares e, depois do divórcio, deixou quase de ter contacto com mulheres. Na primavera de 1975 descobre que não chegará ao Outono, recusando-se no entanto a ler a carta enviada pelo hospital que confirma o diagnóstico, ignorando os procedimentos clínicos normais e tomando o leme do seu próprio destino, da sua vida solitária e reflexiva. Porém, o que podia ser um diário de dor num final de vida, torna-se uma descoberta das sensações, pensamentos e sentimentos de um homem sobre a verdade da vida.
O leitor, que corre o sério risco de se transfigurar num pastor/sacerdote depois da leitura deste livro de Lars Gustafsson, dará por si a recomendar/ler em voz alta passagens como esta: “É sempre a mesma merda. Vamos para a escola, depois para o liceu, depois para a universidade, e passamos por várias represas que nos levam a uma linguagem cada vez mais refinada. E mais abstracta. Estamos com pressa de aprender. No liceu era fácil perceber a diferença entre as crianças oriundas de classes sociais mais baixas e as de classe média. Os miúdos pobres falavam uma língua mais rude, sem ilusões. Passei por essa experiência depois, quando comecei a dar aulas. Uma perspectiva rasteira, em que as motivações de todos os atos eram duras, egoístas, cínicas. Pelo contrário, a linguagem da classe média era a mais indefenida de todas. Baseia-se na crença de que, para subir os escalões da hierarquia social, é preciso agirmos como se já lá estivéssemos, o que cria uma estranha falta de segurança, que é transversal a todo o sistema. Sabemos que querem dizer as palavras, e ao mesmo tempo não as entendemos. Por exemplo, já há vários meses que estou com “cagaço”. Noutra linguagem diríamos: “sinto angústia perante a morte”. A angústia perante a morte dá uma dimensão totalmente diferente à coisa, como se fosse mais sábio dizer “angústia da morte” do que dizer cagaço”. Não creio que esta dimensão mais sábia exista.”
Ou esta: “É incomodativa a parecença entre a dor e o desejo. Ambos monopolizam toda a atenção, nada mais existe, como uma mulher amada. São capazes de apagar tudo, as notícias, o tempo lá fora, as mudanças na natureza, até a angústia. É um reino onde impera uma verdade definitiva.”
Ou então recuarão umas páginas e decidir-se-ão antes por esta: “No fundo de cada ser existe um enigma escuro como a noite. A escuridão no fundo da pupila não é mais do que uma noite sem estrelas. As trevas ao fundo dos olhos não são mais do que as trevas do Universo.”
Ao atravessar os três cadernos que compõem o diário – caderno amarelo, caderno azul e caderno rasgado -, a sensação é a de estarmos perante uma espécie de texto sagrado de 190 páginas. Mas não será mesmo isso? Até aquela espécie de salmo que atravessa todo o livro, “Recomeçamos, não nos rendemos”, fica e não mais sai de dentro de nós. Magnífico.
1 Commentário
Concordo com as suas palavras, estou a lê-lo pela segunda vez. Muito tocante.