Há livros que são quase fisicamente dolorosos e, o premiado romance de David Vann, “A Ilha de Sukkwan” (Edições Ahab, 2011), é pródigo em dor e aflição. Posto isto, é também uma obra soberba, de leitura compulsiva, um daqueles romances que podem ser classificados como incontornáveis ou obrigatórios, sem receio de se estar a cair no exagero a quente que muitas vezes nos tolda o discernimento quando nos emocionamos com um livro. Seja a quente, a morno ou a frio, a obra de Vann é brilhante.
Jim e Roy, pai e filho, rumam a uma inóspita ilha deserta no sul do Alasca para passar uma longa temporada e experimentar um estilo de vida idealizado, próximo do dos primeiros colonos, num contacto mais íntimo com a natureza e um com o outro. Esta é a premissa, a realidade é bem diferente. Desde o início do romance, o leitor é assaltado por um sentimento de desconforto, de mau agoiro, causado tanto pela ideia da vida numa ilha selvagem, com todos os perigos e dificuldades logísticas evidentes, como pela tensão psicológica quase insuportável que vai envolvendo as personagens como um nevoeiro cerrado. Jim, o pai perdido e egoísta que não sabe o que quer, arrasta Roy, o filho forçado, a lidar com o descalabro emocional do progenitor, a quem é imposto um papel de salvador para as suas angústias e problemas, numa espiral que só poderia ser descendente.
Os sentimentos de isolamento, de indiferença da natureza – que não é cruel nem castigadora, é simplesmente indiferente – e claustrofobia psicológica e emocional, estão sempre presentes e fazem dos leitores augures que lêem o futuro nas entranhas dos animais; sabemos sempre que este caminho não leva a bom porto, que se trata de uma viagem cujo destino nem queremos antever. Mas antevemos e persistimos, mesmo assim, porque a narrativa assim o exige. A escrita de David Vann agarra o leitor pelo pescoço, obriga-o a ver, não lhe permite esconder os olhos com as palmas entretanto gélidas e húmidas. E o leitor agradece. Não porque vai terminar a leitura com um sorriso rasgado e pensamentos felizes, mas porque o autor lhe deu algo inesquecível e inestimável: um romance que marca a ferros, uma reflexão sobre a fraqueza, a perda e a natureza humanas.
Vivemos numa época obcecada por coisas felizes, pela leveza e pela beleza dos passarinhos e das borboletas. E, se bem que não há mal absolutamente nenhum em abraçarmos o otimismo e os unicórnios e os arco-íris, não será saudável vivermos numa ilusão que nos torna cegos ao erro, à tragédia e às consequências do egoísmo e da fraqueza. Vann compreende o lado mais negro da natureza humana e sabe muito bem que não é só coisa de psicopatas ou monstros vitorianos: é coisa de todos nós, porque todos somos capazes de escorregar e cair nas areias movediças do egocentrismo e do desespero, e essas areias deixam-nos cegos e surdos, para com os outros e para connosco. E isso, como já se disse, tem consequências.
Mas terminemos com a consequência positiva deste livro: o prazer doloroso de ler um romance que não se refreia nem doura a pílula, que, na sua brutalidade e perfeita beleza, nos deixa marcados e diferentes. Não há assim tantos romances que façam isso, que tenham este tipo de impacto transformativo sobre o leitor e, por isso, agradeçamos ao Sr. Vann.
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