Pouco tempo após o lançamento de “O Pintassilgo” (Editorial Presença, 2014), sublinhada pela imprensa internacional como uma «nova gigantesca obra-prima», o maior impacto foi dado por Stephen King ao comparar Donna Tartt com Charles Dickens. “O Pintassilgo é uma raridade que aparece talvez meia dúzia de vezes por década, uma obra literária que se conecta com o coração e com a mente”, começou por escrever o autor para o The New York Times Book Review antes de compará-lo ao “melhor de Dickens” para dar a conhecer a mais recente obra de Donna Tartt.
O culto pela escritora – alimentado desde 1992, ano de lançamento de “A História Secreta” (Editorial Presença, 2015) – voltou a fincar-se eficazmente no público e especialmente numa geração mais nova, sedentos por saber mais sobre a escritora, cuja vida permanece em completo mistério ao fim de 32 anos de carreira literária, numa época em que a partilha do dia-a-dia está à distância de uma publicação no Facebook ou qualquer outra rede social.
São poucas as entrevistas que deu para promover “O Pintassilgo”, não vai a eventos literários enquanto escreve – com uma média de uma década entre cada obra -, não alimenta qualquer forma de propagação e comunicação digital da sua obra através dos meios tecnológicos à disposição de qualquer um e, quando questionada sobre este mistério à sua volta, afirma e sublinha que “necessita de passar algum tempo sozinha enquanto trabalha”.
Escreve em qualquer lado: em casa de alguém, na biblioteca, na própria casa quando tem convidados – há sempre um momento para fugir um pouco para a pequena divisão que utiliza para trabalhar –, o mais importante é escrever o que lhe vai na mente para não se esquecer. Rascunhos, apontamentos e ideias que estão longe do enredo final. Uma base planeada ao pormenor para dar origem a uma construção magistral, capaz de retirar o fôlego aos leitores, capazes de esperar cerca de dez anos por um novo livro de Donna Tartt. No mercado literário português, “O Pintassilgo” foi colocado à venda cerca de um ano depois do lançamento original e chegou a fazer uma aparição tímida na tabela dos livros mais vendidos, dando asas para uma reedição de “A História Secreta”, obra que a lançou para a rampa de sucesso e se tornou um clássico de literatura.
Richard Papen começa, na primeira página, a contar a sua história com as cartas em cima da mesa e, supostamente, toda a sinceridade sobre os acontecimentos. Sem qualquer contacto com as restantes personagens e sem conhecimento do enredo, Donna Tartt expõe o envolvimento do protagonista de “A História Secreta” no assassinato de Bunny. Contado sob o olhar de Richard, “ …Bunny já tinha morrido há várias semanas quando tomámos consciência da gravidade da nossa situação”. Há um arrependimento depreendido na sua voz, com todo o peso na consciência que tal acto oferece à maioria das pessoas. De certa forma, trata-se de um choque para o leitor.
A preparação é oferecida num segundo momento, em que Richard não consegue acreditar que foi parcialmente responsável pela morte de Bunny, relembrando-se unicamente do momento em que o grupo seguiu “em fila indiana pelo bosque”, olhando uma última vez para trás. Julgava que houvesse “um tempo em que teria tido inúmeras histórias para contar, mas agora não há mais nenhuma. Esta é a única história que alguma vez serei capaz de contar” e, como num acto de contrição, abre as portas para o leitor entrar no enredo. Um tom que só podia ter sido tão bem conseguido por uma mulher tão inteligente como Donna Tartt. Apesar da tristeza expressada por Richard Papen, qualquer leitor inocente está longe de imaginar o quão longe pode ir o ser humano para atingir os seus objectivos.
Natural de Plano, na Califórnia, Richard está longe de se encaixar na terra natal, de ter a pele bronzeada, a paixão pelo mar, muitos amigos ou sequer uma relação de proximidade com os pais, deixando-se levar pela tentação de fabricar uma nova história, longe da vulgaridade das suas origens, ao chegar à Universidade de Hampden, onde conhece o grupo constituído pelo inteligente e obcecado Henry, Bunny, Francis e os gémeos Charles e Camilla, pertencentes a um grupo social elevado. “Não tenho nem nunca tive nada em comum com nenhum deles, nada a não ser alguns conhecimentos de grego e o ano que passei na sua companhia”, faz questão de salientar ao apresentar cada um nas primeiras páginas.
Richard, curioso com a figura do solitário mestre Julian, não desiste até ser aceite na pequena turma e, aos poucos, é absorvido pelas personalidades complexas de cada um dos cinco alunos, interessados em arte, literatura e no belo ao invés de sexo, festas e televisão. Ao longo do enredo há um leque de conhecimentos sobre o ser humano – desde as suas caraterísticas mais malvadas às mais benévolas –, e há também uma declaração de amor e admiração à cultura grega, ensinada nas aulas de Julian: a Platão, a Homero, à “paixão pela ordem e pela simetria” do povo grego, que sabia “reconhecer o erro que era negar o mundo visível, os velhos deuses” e outras tantas referências ensinadas nas aulas. Se a particularidade da cultura grega se impunha, aos poucos, no quotidiano de Richard, por outro lado a vulgaridade e a banalidade de um campus universitário também são apresentadas ao leitor. Na vida do jovem protagonista há, inicialmente, um equilíbrio. Há um terreno pleno aos seus pés até começar a entrar na vida de cada um dos elementos do grupo de amigos e descobrir o melhor e o pior da raça humana em cada um deles.
O mistério começa a partir do momento em que Bunny anuncia a sua viagem de férias de Natal até Roma com Henry. Este último acaba por regressar mais cedo, encontrando o protagonista num quarto com um buraco no telhado em pleno inverno rigoroso em Vermont, prestes a morrer de hipotermia. Ao contar a verdade económica sobre Bunny – incapaz de pagar alguma coisa do seu bolso –, os conflitos no meio do grupo começam e elevam-se até culminar no acto fatal e, consequentemente, alterando a vida do grupo. Ao leitor, o protagonista conta que “por qualquer motivo, é-me difícil escrever esta parte da história”, dada a violência do acto provocado. A complexidade da narrativa de Donna Tartt é visível e sentida aos olhos dos leitores, a atmosfera muda suavemente no campus da universidade e na sala de aula de Julian. Se o ódio por Bunny é alimentado à medida que as páginas avançam, o arrependimento chega no momento em que não há forma de regressar atrás “(…Só mais tarde, na solidão da memória, é que sobrevém a consciência disso: quando a poeira assenta (…) quando uma pessoa olha em volta e se surpreende a si mesma noutro mundo completamente diferente”).
Como é que a consciência pesada pode afectar a rotina de simples estudantes de Grego? Como é que a desconfiança nasce em apenas um elemento e se propaga, à velocidade da luz, pelos restantes? Pode, de alguma forma, uma personalidade mudar drasticamente ou a verdadeira natureza nasce com o ser humano? “Torna-te aquilo que és”, afirmou Nietzsche. Donna Tartt consegue passar ao leitor uma verdadeira e perigosa metamorfose ao leitor: em que o belo pode estar perto da morte, em que rituais da cultura grega equivalem a festividades universitárias. Com o desastre à volta do desaparecimento de Bunny, a tragédia chega à vida de Charles, Camilla, Henry, Francis e Richard e, apesar do leitor querer fazer alguma coisa para os alertar, é um mero espectador.
O envolvimento do leitor é palpável no final da leitura, como se esta História Secreta tivesse sido contada em voz baixa, em tom de confessionário. Tal como John Mullan escreveu para o The Guardian, todos os milhões de leitores desta obra tiveram a ilusão de serem dignos de confiança para terem conhecimento do segredo mais perigoso e, apesar de ter sido publicado há quase 23 anos, este livro permanece extremamente actual.
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