Antes de mergulharmos de cabeça no intelecto labiríntico de Jacques Rancière, um breve apontamento de louvor à Orfeu Negro pelo cuidado que tem com o aspecto das suas edições. Se porventura o conteúdo fosse pobre (e não é), ao menos ter-se-ia uma estante embelezada pelo catálogo da editora que tem uma dualidade de critério peculiar, no sentido mágico da coisa, entre a prosa erudita e a literatura infantil.
Posto isto, um segundo começo ao presente texto. O conjunto de ensaios previamente dispersos, bem como inéditos, que integram “A Fábula Cinematográfica” (Orfeu Negro, 2014), foram retrabalhados pelo referido Rancière com o âmbito de permitir uma maior fluidez entre capítulos. A edição ganha por se demarcar do parente pobre que lhe associamos, o da compilação de artigos publicados e/ou discursos de palestras transcritos ipsis verbis, sem preocupação alguma pela maldita redundância.
Aos que se aventurarem na leitura da Fábula, não existe um percurso certo para descodificá-la, aliás, o apreender global do seu conteúdo implica uma dedicação que nem todo o leitor estará disposto a ter. Daí que o mais importante será a abertura a novas perspectivas, formular ideias, despir o cinema de qualquer artifício ou dogma que se tenha imbuído no imaginário colectivo, ou seja, nos preconceitos indisciplinados dos espectadores que exigem que se cumpra a norma. Existem, por isso, dois ritmos de leitura em “A Fábula Cinematográfica”; o do cinéfilo que já papou os cânones, as escolhas menos óbvias e as mais esquecidas, indivíduo que acompanhará as descrições de Rancière sem esforço; o do aprendiz (ou mero entusiasta), que se esforça por visualizar os planos descritos, na esperança que a imaginação se assemelhe àquilo que algum dia verá. Este segundo prezará o “índice de filmes citados” que figura no fim do livro, pois terá sugestões para ver até ao fim dos tempos (exageros à parte, oh internet, o quanto facilitas a vida) – talvez, nesse aspecto e paradoxalmente, a Fábula sirva também de introdução.
Para acompanhar o raciocínio de Rancière, é preferível que se abandone a ideia de que o cinema é uma força artística composta por uma soma de outras artes, agrilhoada pelos ancestrais ditames da literatura e dramaturgia clássica, ou, com o advento da televisão, pelos condicionalismos das grelhas de programação e anúncios publicitários. O autor propõe uma emancipação das demais vertentes que compõe o cinema através de uma exploração atípica e desconstrução das partes, sendo que cineastas-chave (F.W. Murnau, Chris Marker, Jean-Luc Godard, Alfred Hitchcock, entre outros) desbravaram terreno, com todo o mérito, naquela que é uma arte jovem e por isso ainda a revelar potencialidades. Através da sua poética, daquilo que se esconde debaixo do visível, o cinema afirma-se fulcral para a memória (e composição da história) universal. Agora, esperam-se novas cadências e rumos em detrimento da influência da Antiguidade Clássica e a estagnação intelectual do fast food criativo.
Para teorizar as fabulações do “olho mecânico”, é crucial quer a compreensão dos vícios do cinema, quer o seu estado da arte. Trata-se de ir além da nossa percepção imediata, além daquilo que reveste o mise-en-scène. Para isso serve a literatura ensaística. Mesmo sendo o cinema uma arte autónoma, capaz de se afirmar como a manifestação cultural última da humanidade, convém recorrer à velhinha palavra escrita para descortinar os enigmas contidos nas imagens em sequência. Não basta só ver e ouvir, é preciso também o outro tipo de ver, a leitura.
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