Dar corpo e voz aos protagonistas de um tempo que ficou fora da História. É este o desafio que Léonora Miano enfrenta com o seu sétimo romance, intitulado “A Estação das Sombra” (Antígona, 2015).
A escritora camaronesa, radicada em França, debruça-se sobre uma época pouco focada nos livros de história ocidentais. Esse tempo é aqui visitado pelos olhos dos seus protagonistas: a população da África subsariana, confrontada no final do século XVI com a chegada dos europeus e de um comércio feroz assente no tráfico de seres humanos.
São conhecidas as representações históricas e artísticas da escravatura, e das provações infligidas aos povos africanos com esse flagelo desumano. Mas quem eram estas pessoas? Como viviam elas? Qual foi o impacto desta tragédia nos povos que a sofreram, e nos indivíduos que escaparam à captura?
O livro procura dar-nos algumas respostas, centrando a narrativa numa tribo isolada no interior da África Central, cuja aldeia foi marcada por um grande fogo. Com as habitações reduzidas a cinzas, os habitantes de Mulongo apercebem-se, consternados, de que 10 adolescentes e dois anciãos desapareceram sem deixar rasto. Aquelas cujos filhos não foram encontrados são temporariamente banidas para uma habitação única, para não contaminarem toda a aldeia com a sua angústia. As explicações para a tragédia não se encontram: será bruxaria? Uma ofensa aos antepassados? Um ritual não cumprido?
A seu tempo será claro que não foi a morte a levar os doze homens – foram capturados por uma população vizinha e vendidos como escravos aos “homens com pés de galinha”, alcunha dada aos europeus. O livro relata a demanda do chefe Mukano e de três mulheres da aldeia, que tentam fazer sentido da tragédia e encontrar o rasto dos desaparecidos. Há um vilão na história, o gordo Mutango, meio-irmão do chefe, que procura o seu próprio benefício na sequência da tragédia.
Apesar de não ser historiadora, Léonora Miano baseou-se numa pesquisa exaustiva para retratar a perspectiva dos protagonistas da época. Não há uma contextualização histórica para benefício do leitor – este vai-se apercebendo dos contornos da história através das vivências dos próprios personagens.
Trata-se, sobretudo, de dar corpo e consciência a pessoas concretas, como as três mulheres protagonistas: Eyabe, que significa “nascimento” na língua douala dos Camarões; Ebeyse, a matriarca da tribo, responsável pelo equilíbrio da comunidade; e Ebusi, que não se conforma com a tragédia. Cada uma delas tem a sua verdade, a sua consciência do mundo, marcada pelos usos, crenças e costumes ancestrais, transmitidos de geração em geração, e que perdem todo o sentido em face da tragédia. Sobretudo pela voz de Eyabe, cuja “ identidade não era a de uma mulher isolada (…). Provinha de um povo que possuía uma língua, usos, uma visão do mundo, uma história, uma memória”.
A prosa mística e espiritual de Miano dá-nos a conhecer a riqueza cultural africana; por exemplo, para os Mulongo, sonhar era uma actividade muito importante: “O sonho é uma viagem dentro de si próprios, fora de si próprios, na profundidade das coisas e para além delas. Não é somente um tempo, mas também um espaço. O lugar da descoberta. O da ilusão, por vezes, porque o mundo invisível está cheio de coisas maléficas”.
“A Estação da Sombra” retrata uma população confrontada com uma situação inédita e incompreensível: seres humanos pensaram tirar partido do comércio de outros seres humanos, enquanto a outros seres humanos foram arrancados os seus entes queridos com violência. É uma história de morte, mas também da vida que se segue a essa morte, e do espírito humano, que resiste apesar de tudo.
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