Escrito em 1955, “A casa da aranha” (Quetzal Editores, 2014) permanecia por publicar em Portugal. Depois de inaugurar com “Viagens” uma série dedicada a Paul Bowles, a Quetzal edita agora este magistral romance do escritor norte-americano, passado em Fez, «uma cidade medieval em funcionamento no século XX.»
Apesar de à imagem de outros livros de Bowles estar nele espelhado o conflito entre civilizações, “A casa da aranha” leva ao extremo a clivagem entre a cultura árabe e a do descolonizador francês, apresentando uma história «não sobre o padrão tradicional da vida em Fez, mas sobre a sua dissolução.»
Trata-se de um livro político, ainda que dele saiam todos a perder. É o próprio Bowles que o diz no prefácio. Apesar de referir que «a ficção deve manter-se distante de considerações políticas», refere igualmente que «a indiferença é impensável.» Bowles deplora tanto as atitudes dos franceses como as dos marroquinos nacionalistas, que quiseram ser ainda mais europeus que os franceses.
É também o livro mais rigoroso e metódico de Bowles, ao contrário de, por exemplo, “Deixa a chuva cair” ou “O céu que nos protege”, que iam sendo escritos ao sabor da vontade e do espírito do escritor. Com “A casa da aranha” Bowles levantava-se religiosamente às seis horas da manhã, escrevendo cerca de duas páginas por dia. Mas que história de tensão nos oferece este livro, onde «somente o cenário é objetivo; o resto é inventado»?
Numa cidade ocupada pelo colonizador francês e onde os nacionalistas do Istiqlal lutam pela libertação, a acção de “A casa da aranha” está centrada, maioritariamente, em três personagens, que com as suas diferenças ajudam a adensar o clima de desintegração e a complexidade vivida em Fez.
Stenham é um escritor, um ex-comunista e (agora) liberal desiludido, que vive em Fez há alguns anos, fascinando pelo espírito nativo e achando que estes serão felizes à sua maneira, mesmo que os ocidentais possam julgar que o seu sistema de vida e de castas é tremendamente desigual e injusto. Afinal, Stenham não quer salvar o mundo: quer salvar-se apenas a si próprio.
Polly Burroughs – ou Madame Veryon – é uma mulher atraente, sobretudo de rosto, que acha impossível – e sobretudo indesejável – voltar atrás. Para ela Fez terá de entrar no caminho ocidental, deixando para trás uma cultura de pobreza e desigualdade. Porém, por detrás de uma personalidade exteriormente descomprometida encontra-se uma rapariga extremamente mimada, que acima de tudo pretende coleccionar troféus e regressar a Paris como a heroína que viveu entre os nativos.
Amar é o coração e a alma de “A casa da aranha”, um ingénuo e analfabeto rapazinho que segue os ensinamentos do Alcorão, não se cansando de os repetir como mantras nas acções e gestos que vai fazendo a cada dia. Algo que herdou do pai, um implacável “pregador” caído em desgraça.
Há também outras personagens importantes, como Moss – um rico e influente inglês que mantém com Stenham um jogo de subterfúgios – ou Moulai Ali – um falso general muçulmano, líder da revolta nacionalista -, mas é neste triângulo escaleno que se produzirá no leitor toda uma geometria emocional.
Bowles dá voz e substância a cada uma das três personagens, permitindo ao leitor conhecê-las com maior detalhe à medida que o prenúncio de violência e mudança fica mais perto. Será porém Amar a personagem mais marcante, que simboliza um país estilhaçado por duas forças que estão longe de compreender a sua essência. Através do olhar inocente e ingénuo de Amar – que sonha tornar-se o braço direito do sultão – assistiremos ao colapsar de toda uma cultura, à morte e ao abandono de um país, ao desprendimento do observador que recusa ajudar o “bom selvagem” em nome da sua sobrevivência e egoísmo.
Com uma escrita que é toda ela o tecer de uma imensa teia, Paul Bowles oferece ao leitor um romance extraordinário, que mostra uma cidade – e um mundo – a acordar em sobressalto num monte de ruínas.
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