A primeira impressão que tive ao ver o cartaz original de “Yôko, a Delinquente” (1966), de Yasuo Furuhata, foi que ele sugeria, de certa forma, o fenómeno das sukeban – jovens delinquentes que começaram a destacar-se no Japão da década de 60 e se consolidaram como ícones da rebeldia juvenil, ao tornarem-se personagens centrais de filmes de exploitation, uma década depois. A actriz Mako Midori (“Blind Beast”), de cigarro na boca e encostada à parede, trouxe-me de imediato à mente não apenas a iconografia desse submundo, mas o próprio espírito de insubmissão que lhe deu forma no ecrã.
Ao assistir aos primeiros minutos do filme, percebi que, embora evoque temas similares, não era afinal o precursor do género sukeban que imaginara. A primeira longa-metragem de Yasuo Furuhata é um drama centrado na busca de libertação de uma juventude autodestrutiva, mas sem a codificação de género que define antologias de filmes como “Stray Cat Rock” (1970-1971), a incursão mais psicadélica da Nikkatsu, ou a mais extrema e política “Terrifying Girls’ High School”(1972-1973), produzida pela mesma Toei que nos deu “Yôko, a Delinquente”.
Apesar da estética mais próxima da Nova Vaga Japonesa e do seu realismo dramático, o filme que agora estreia entre nós mantém a energia crua e rebelde dos filmes sukeban. Afinal, o tema das jovens delinquentes já não era novidade no cinema japonês, especialmente no seu registo mais dramático. Hiroshi Shimizu explorou-o com sensibilidade, e sem julgamentos, ao retratar a vida das raparigas em reformatórios no belíssimo “Girls Reform School” (1956).
A estreia em sala de “Yôko, a Delinquente”, no âmbito do ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos IV, que recomendo vivamente – não percam também “Imagem de uma Mãe” (Hiroshi Shimizu, 1959) e “Roída até ao Osso” (Tai Kato, 1966) –, é uma oportunidade imperdível para explorar um subgénero de obras que, embora distintas de Yôko, partilham um espírito comum.
Nestes “filmes sukeban” mistura-se violência e entretenimento, mas o que os torna verdadeiramente distintos é a urgência e o estilo com que são filmados. A crítica social transborda, as tensões emergem a cada cena, e a câmara, sempre inquieta, capta uma energia bruta, movida pelo rock, jazz e funk, frequentemente de carácter diegético.
As produções que exploraram estas figuras das raparigas delinquentes rebentaram na década de 1970, como resposta à crescente popularidade da televisão e à consequente queda de público nas salas de cinema. A Toei liderou essa investida, estreando várias sagas a um ritmo vertiginoso, impulsionada pela rivalidade com outras grandes produtoras.
É comum apontar-se “Girl Boss: Broken Justice” (1969), da Nikkatsu, como o ponto de partida do género. Contudo, foi com as sagas da Toei que este subgénero encontrou a sua identidade plena, nos filmes Pinky Violence, especialmente com “Girl Boss” (1971-1974) e “Terrifying Girls’ High School”, pilares do subgénero sukeban.
O termo Pinky Violence foi cunhado retroactivamente para descrever um conjunto de filmes que, à época da sua estreia, ainda não tinha essa designação. A expressão resulta da fusão de dois elementos bem claros: pinky, alusivo à nudez implícita; e violence, referente à brutalidade explícita desses filmes. Embora mais ligado à Toei, o conceito estendeu-se a outras produtoras que, apesar das diferenças, partilhavam fórmulas e elementos comuns.
Com uma abordagem subversiva, sexual e política, tornou-se uma das expressões mais ousadas — e, para quem nele se aventura, surpreendentemente fascinantes e contraditórias — do cinema japonês mais radical e série B da década de 1970.
Para garantir um fluxo constante de produções lucrativas, os estúdios adoptaram uma estratégia implacável: lançar vários filmes por mês para assegurar contratos exclusivos com as salas de cinema.
Dessa lógica frenética nasceu uma fusão de subgéneros que definiu o cinema exploitation nipónico, com os filmes sukeban à boleia. Neles, as jovens raparigas, longe da subordinação típica, enfrentam e subvertem as estruturas de poder que as oprimem. As personagens interpretadas por Meiko Kaji, Miki Sugimoto e Reiko Ike não são apenas figuras de resistência, mas símbolos de um novo poder feminino. Nas suas lutas contra o patriarcado, a corrupção institucional ou as gangues rivais, o corpo transforma-se num campo de batalha, onde violência e resistência se entrelaçam, tudo ocorrendo em espaços que deveriam ser refúgios (escolas, reformatórios juvenis, prisões) mas que, na realidade, se revelam cenários de um poder pervertido, onde a justiça dificilmente se faz por vias convencionais.
“Stray Cat Rock” é uma das produções mais emblemáticas da Nikkatsu, com Meiko Kaji no centro, encarnando uma nova imagem da rebeldia feminina. Ao longo de cinco filmes, estas sukeban não se limitam a desafiar o sistema mas também a moral dominante, movendo-se num turbilhão de problemas relacionados com a corrupção, o racismo e a liberdade sexual, filtrado pelo espírito hippie e pela contracultura. Com uma estética muito pop e psicadélica, realizadores como Yasuharu Hasebe (“Black Tight Killers”) e Toshiya Fujita (“Lady Snowblood”) jogam com técnicas experimentais, ângulos fora da norma, split screens. Cinema feito rapidamente, económico, destinado na altura a ser descartável – mas cuja criatividade e insolência, ainda hoje, permanecem.
Se “Stray Cat Rock” traça um retrato vibrante da juventude em ebulição, “Delinquent Girl Boss”, da Toei, percorre um caminho mais leve e cómico, sem perder de vista a rebeldia que define o género.Ao longo de quatro filmes, entre a acção e a comédia, o realizador Kazuhiko Yamaguchi acompanha a trajectória de uma jovem rebelde e desenha o percurso de ex-prisioneiras que procuram reescrever o seu destino, num jogo de alianças e confrontos. Yamaguchi imprime-lhe um tom mais descontraído, quase lúdico, uma visão colorida da resistência feminina que contrasta com a ferocidade de “Terrifying Girls’ High School”.
Composta por quatro filmes, a antologia “Terrifying Girls’ High School” leva o género Pinky Violence a um dos seus extremos mais ousados e interessantes. Com Norifumi Suzuki (“School of the Holy Beast”) ao leme nos dois primeiros filmes, a saga funde os arquétipos do filme de prisão num contexto escolar com uma sátira social corrosiva e um imaginário carregado de erotismo S&M e violência.
Enquanto “Delinquent Girl Boss” e “Stray Cat Rock” jogam com a leveza, aqui tudo se adensa – a escola é um campo de batalha onde a corrupção e o abuso imperam, e a revolta feminina surge como única possibilidade de sobrevivência.
A violência em “Terrifying Girls’ High School”não é apenas o meio, mas o fim em si, um destino que vai subjugando o espectador, forçando-nos a acompanhar o colapso de uma sociedade hipócrita.
A subversão destes filmes é, antes de mais, uma ruptura com qualquer ideia de moralidade, um ataque à estrutura do que consideramos aceitável. Muitas vezes explícita e sem disfarces, a violência carrega consigo uma contradição fundamental ao próprio cinema de exploitation: o corpo feminino, exposto e por vezes humilhado, transforma-se, paradoxalmente, numa forma de poder e autonomia, que se eleva num universo de corrupção e totalitarismo. A estética, marcada pela distorção e pelo excesso, é mais do que uma opção visual, é um verdadeiro assalto aos olhos.
Para o espectador menos preparado, será provavelmente um abismo de perversidade e excessos, mas para os fãs do cinema mais radical e de género, é uma experiência que se impõe, uma memória difícil de apagar, com o segundo filme da série, “Terrifying Girls’ High School: Lynch Law Classroom”, a representar o ponto mais alto dos quatro filmes.
Enquanto “Terrifying Girls’ High School” se desenrolava, a Toei lançava, em paralelo, a série de filmes “Girl Boss” (1971-1974). Partilhava algumas afinidades temáticas, mas afastava-se da radicalidade da primeira. Mais acção do que contestação, mas isso não é um defeito. Aqui não há grandes reflexões, apenas uma energia própria e um prazer imediato, que fazem de “Girl Boss” um antídoto perfeito para uma segunda-feira mais difícil.
Muitos filmes e outras sagas surgiram dessa produção em massa, expandindo-se para além das narrativas sukeban e aventurando-se por universos onde o sensacionalismo se fundia com os géneros clássicos, como os filmes de samurais. Durante a década de 1970, muitos destes dramas de época ganharam também um lado mais sórdido e sangrento, como se pode ver nos assombrosos filmes da saga “Lone Wolf & Cub”, que certamente agradará aos fãs dos filmes de samurais de Akira Kurosawa ou Hideo Gosha.
Entre as muitas narrativas de resistência (e vingança), não posso deixar de mencionar “Female Prisoner Scorpion”, a mais icónica – e, arrisco dizer, a melhor – do género Pinky Violence, ainda que um pouco distante do universo sukeban. Os filmes desta série da Toei, protagonizados também por Meiko Kaji, destacam-se pela estilização das cores, pela iluminação expressiva e por sequências oníricas que, por vezes, tocam o surrealismo. O que se revela é uma fusão fascinante entre cinema de exploitation, subtexto feminista e uma estética visual artística. E, mais uma vez, tudo isso é feito com recursos escassos mas com uma criatividade que os torna irresistíveis.
Ao longo de quatro filmes – e mais um par fora da tetralogia original -, acompanhamos a transformação de Nami Matsushima, a “Escorpião”, de mulher traída e manipulada por um polícia corrupto a uma força implacável de vingança, tanto física como espiritual. Como anti-heroína, torna-se o reflexo da fúria dos silenciados. “Female Prisoner Scorpion” estabeleceu-se como um clássico de culto, cujas influências se estendem até aos thrillers de vingança contemporâneos, como Kill Bill (2003-2004), que surrupia a canção “Urami Bushi” para os créditos.
A imagem de Mako Midori e a estreia de “Yôko, a Delinquente” nas nossas salas foram o mote para esta incursão por um capítulo mais obscuro e pouco explorado do cinema japonês. À sua maneira, Yoko reflecte uma cultura underground, uma rebeldia que vai além do individualismo e revela uma dimensão mais social. Serve como lembrete de que o cinema japonês, ao contrário do que muitas vezes se supõe, não se alimenta apenas da representação das famílias tradicionais mas também das personagens subversivas que emergem das margens da sociedade. Se o sonho de Yôko de chegar a Saint-Tropez não fosse tão vívido, poderia facilmente ter-se perdido nas ruas de Tóquio, entre as muitas sukeban.
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