“Viver à Margem” – “Time Out of Mind” no original – conta-nos a história de George (Richard Gere), um sem-abrigo à deriva pelas ruas de Nova Iorque, que se recusa a aceitar a sua condição. Ao longo do filme ouvimo-lo repetir vezes sem conta que o seu único desejo é poder dormir em paz e sossego. No entanto, não estamos perante uma tarefa fácil, já que o ruído parece estar em todo o lado: sirenes, buzinadelas, música de fundo e conversas cruzadas convertem a privação de sono num estado quase permanente. Os sons que compõem a vida diária de qualquer grande cidade acabam, aliás, por servir aqui como banda sonora – uma singularidade desta longa-metragem.
Não é, porém, a única: o realizador Oren Moverman rejeitou a ideia de uma estrutura narrativa clássica, optando por seguir um argumento tão deambulante quanto a própria personagem principal; George não tem para onde ir e limita-se a vaguear pelas ruas; acompanhamo-lo ao longo de um entediante processo: arranjar um tecto sob o qual seja possível dormir; esperar pacientemente pela atribuição de uma cama numa instituição destinada a pessoas sem-abrigo; ouvir as discussões intermináveis entre os residentes, maioritariamente de raça negra – e que, a páginas tantas, lhe dirigem piadas racistas; responder a uma torrente de perguntas por parte de uma assistente social em troca de um título de refeição.
George tem dificuldade em falar sobre si próprio e teima em repetir as mesmas frases, demonstrando uma acentuada tendência para a evasão. A única vez em que é capaz de se definir de algum modo diz algo como isto: “Sou apenas um falhado. É provável que nunca tenha passado disso.” O que não deixa de ser espantoso, já que estamos perante um actor habituado a desempenhar papéis no extremo oposto: quem não se lembra de “American Gigolo” ou “Oficial e Cavalheiro”, onde o magnetismo junto das mulheres era inegável? Aqui, Gere liberta-se do mais ínfimo vestígio de vaidade, vestindo a pele de um homem consumido pela perda e condenado à solidão. O que não o impede de procurar a filha, Maggie (Jena Malone), cuja educação descurou a partir do momento em que se entregou ao álcool. O pouco que sabemos sobre o passado de George deve-se a Dixon (primoroso Ben Vereen), um sem-abrigo “tagarela” que passa a segui-lo com fidelidade canina. Graças a esta convivência – “amizade” seria um termo demasiado forte para quem desbaratou todos os laços -, descobrimos uma pequena parte da vida que acabou por perder.
A escolha de Gere para este papel foi, nesta medida, providencial: recorda-nos que por detrás de cada mendigo existe uma história, independentemente do percurso que possa ter existido. Um dos momentos mais belos do filme debruça-se precisamente sobre isso: George senta-se ao piano e começa a tocar de forma exímia, revelando um talento que não está ao alcance do comum mortal. Contudo, há que partir em busca da próxima refeição ou do documento que lhe permita provar a sua existência perante a Segurança Social – e, até certo ponto, perante ele próprio. Sem isso, é como se a sua própria identidade lhe tivesse sido retirada. George converte-se numa espécie de fantasma, alheado de tudo e de todos, e só mesmo a eventual reconciliação com a filha pode servir como motor para a redenção.
O problema é que um sem-abrigo a pedir esmola nas ruas de Manhattan se torna invisível. Quando George, de copo na mão, pede umas moedas, todos o ignoram, porque, pura e simplesmente, se recusam a vê-lo. É fácil perceber porquê: tem a ver com a matéria de que somos feitos. Para o bem e para o mal, é a natureza humana.
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