E, quase sem ninguém dar por isso, Ruben Östlund venceu a Palma D’Ouro com “Triângulo da Tristeza”, entrando para o restrito grupo de autores que venceram esse prémio por duas vezes e na categoria dos grandes mestres do cinema da actualidade (em Portugal, houve logo retrospectiva pelas salas com o selo da Alambique). Certo é que o sueco tem criado um corpo de obra bem consistente, interessante e com uma marca pessoal bem vincada, em redor da condição social da actualidade, com um sentido de humor quase a chegar ao absurdo e uma frieza nórdica muito calculista. É quase como se Michael Haneke tivesse um filho com Roy Andersson.
“Triângulo da Tristeza” é uma sátira com apurada perspectiva de classe, sobre os 1 por cento deste mundo. Eat the rich, grita Östlund a plenos pulmões, satirizando, ridicularizando, mas também devolvendo-nos o reflexo do espelho ao mesmo tempo, acusando-nos de fazermos o mesmo caso tivéssemos essa oportunidade. No entanto, antes de entrarmos naquela viagem num cruzeiro super-luxuoso (filmado no antigo barco de Aristóteles Onassis, o que não podia ser mais simbólico), “Triângulo da Tristeza” apresenta uma primeira parte que funciona quase como prólogo, debruçando-se sobre as condições de género e os papéis estereotipados que a sociedade reserva para homens e mulheres.
Carl (Harris Dickinson) e a namorada, Yaya (Charlbi Dean), são modelos e influencers, dando o pontapé de saída para esta reflexão. Primeiro, há um momento num casting para modelos masculinos, uma espécie de versão cínica de “O Demónio de Néon”; depois um jantar, com uma discussão sobre quem paga a conta. Daqui saltamos para o tal cruzeiro, onde Carl e Yaya são apenas dois dos passageiros desta tripulação coral. Há o rei da merda Dimitri (Zlatko Buric), um milionário russo que fez fortuna com fertilizante (mais a sua esposa-troféu); há uma senhora que teve um AVC, e que só consegue repetir In den wolken (Iris Berben); há a chefe do pessoal (Vicki Berlin), demasiado serviçal para quem anda a responder aos caprichos daqueles ricaços mimados; e há, claro, o capitão do navio (Woody Harrelson), demasiado cansado daquele teatro de aparências para conseguir manter a compostura.
A primeira parte decorre com a precisão certeira do costume de Ruben Östlund, com uma ironia afiada e uma crítica mordaz às elites do mundo (há um casal de velhinhos simpáticos que, vai-se a ver, fizeram vida a vender armamento e que, cá se fazem cá se pagam, irão provar do seu próprio veneno mais tarde). O desastre está anunciado, mas não estávamos à espera que fosse daquela forma. Subitamente, não só a viagem mas todo o filme implodem, sob uma avalanche de escatologia que envolve vomitado e cocó em igual proporção. Há um jantar de marisco de haute cuisine estragado (ah, a ironia, essa coisa tão fácil de se confundir com o óbvio) e, de repente, já não sabemos se estamos a ver “Triângulo da Tristez”a ou um episódio de Family Guy.
A partir daí, “Triângulo da Tristeza” altera-se completamente e começa a chover no molhado. Atente-se a discussão entre Woody Harrelson, o socialista, com o russo capitalista, por entre citações a Marx ou Ronald Reagan (faltou ali o Jordan Peterson para o ramalhete ser perfeito), um exercício tão redondo quanto óbvio. Mas o filme tem ainda uma terceira parte, quando o barco afunda e alguns passageiros se tornam náufragos numa ilha deserta. Aqui, recuam todos à caricatura dos seus próprios arquétipos, especialmente porque há uma nova adição ao casting colectivo: Dolly De Leon, uma filipina que pertencia aos estratos inferiores do iate e que, por ser a única que sabe fazer alguma coisa naquele grupo (cozinhar, pescar, caçar…), se torna automaticamente na ditadora do grupo. É “O Senhor das Moscas” outra vez e a vingança dos 99 por cento, mas de uma forma que parece ter sido feita por quem começou a estudar a teoria de classes ontem. Por isso, “Triângulo da Tristeza” é feito de uma primeira parte muito boa e uma segunda parte sofrível. Se não tiverem coragem só para ver metade, então têm que levar o Double Cheeseburger para casa.
Filme disponível para aluguer na plataforma Filmin
Texto publicado originalmente em Royale With Cheese.
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