Quando Portugal enviou o cante alentejano para ser considerado pela Unesco para património imaterial da Humanidade, Sérgio Tréfaut foi um aliado de peso. O realizador de Lisboetas acabou mesmo por realizar um documentário sobre o cante, chamado Alentejo, Alentejo, que acabaria por colocar a semente que iria germinar neste Raiva, adaptado do romance Seara de Vento, de Manuel da Fonseca.
A região do Alentejo, com o seu imaginário e símbolos fortes, casa facilmente com o grande ecrã e com o cinema de género. Aliás, o que surpreende é que não seja mais aproveitado pelo cinema, se bem que na literatura existem alguns exemplos, desde quase toda a obra do Urbano Tavares Rodrigues ao Levantado do Chão, esse livraço de estreia do Saramago, que toda a gente parece esquecer em detrimento dos mais cinematográficos Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez.
Nos anos 90, Joaquim Leitão aproveitou o folclore alentejano para fazer um western à portuguesa, o icónico Alentejo sem Lei (quem não conhece o mataram-me?). O imaginário de Raiva é o mesmo, mas o filme não podia ser mais diferente. Ambientado nos anos 50, Raiva é um filme sobre a miséria (sem ser miserabilista, ou seja, mais Pedro Costa e menos Teresa Villaverde), a opressão e a subjugação.
Filmado num preto e branco de alto contraste, o ambiente e formalismo austero de Raiva remete inevitavelmente para o minimalismo de Bresson e até para um certo neo-realismo nórdico de Bergman. Obviamente o preto e branco, que acentua a dicotomia entre o bem e o mal, também remete para o especialista nestes jogos de sombras, Jacques Tourneur, mas Raiva é bem mais formal. Tão formal, que por vezes até parece que irá acabar por ficar fechado para dentro, num exercício tão rígido quanto hermético.
Raiva é um filme de vingança e nem sequer estou a spoilar porque é mesmo assim que começa: Paiva (Hugo Bentes) pega na caçadeira e numa mão-cheia de cartuchos e despacha ao tiro um tipo e o respectivo filho. Depois, volta atrás, naquela estrutura narrativa tão conhecida desde O Crepúsculo dos Deus, e vamos ver o que se passou e perceber o que levou aquilo. E o que temos é um retrato neo-realista do Alentejo do tempo da outra senhora, da pobreza e do sufoco quase feudal, num grito mudo de violência latejante.
É um filme tipo panela de pressão, que vai enchendo aos poucos até explodir, que poderia (e deveria) ainda servir de reflexão histórica. Quando algumas almas iluminadas dizem que dantes é que era bom, será que era a isto que se referem? Raiva é um belo McBacon para os anais do cinema português, ajudando Sérgio Tréfaut a colocar mais um tijolo numa filmografia bem interessante que tem vindo a construir aos poucos.
Artigo orinalmente publicado em Royale With Cheese
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