Depois do sucesso comercial de “Only Lovers Left Alive” (2013), Jim Jarmusch regressa com “Paterson”, um filme sobre uma personagem simultaneamente vulgar e invulgar: vulgar porque se trata de um motorista de autocarro com uma existência muito rotineira; invulgar porque tem uma paixão secreta: a poesia. Nas horas vagas, Paterson entretém-se a escrever sobre os temas mais prosaicos, à semelhança do escritor que em tempos também viveu na cidade homónima: William Carlos Williams.
Adam Driver foi o actor eleito para desempenhar o papel principal e consegue projectar com eficácia a imagem de serenidade pretendida; Paterson vive com a namorada, Laura (Golshifteh Farahani), de origem iraniana, e acorda todos os dias às seis da manhã. Invariavelmente, come Cheerios ao pequeno-almoço e leva uma lancheira prateada para o trabalho. Regressa a casa por volta das seis da tarde, onde Marvin, um bulldog inglês, o espera para passear até ao bar da esquina. Aí, Paterson põe a conversa em dia com o bartender, Doc (Barry Shabaka Henley), cimentando uma rotina que raramente sofre alterações. Não há aqui, porém, qualquer módico de aborrecimento: é graças a esta regularidade tão familiar que Paterson mantém o equilíbrio.
No entanto, há algo mais: a escrita. Todas as manhãs, antes de ligar a ignição do autocarro, o herói compõe versos sobre a transcendência do quotidiano; é capaz de começar um poema – que nós vemos projectado no ecrã – em torno de uma caixa de fósforos, convertendo-o em seguida numa homenagem ao amor romântico; os textos são simples e depurados, bem ao estilo de William Carlos Williams, cujo célebre “This Is Just to Say” não deixa de ser referido. E embora a sua musa inspiradora, Laura, insista para que o seu trabalho seja publicado, Paterson não alimenta qualquer desejo de reconhecimento, encarando a poesia como uma espécie de diário.
Estamos perante um tributo a escritores de uma outra era, que escreviam apenas durante o tempo livre, uma vez que tinham outras profissões (William Carlos Williams era, como se sabe, médico em Paterson). A nostalgia encontra-se aqui presente, mas sem qualquer azedume: Jarmusch parece querer recordar-nos que, se quisermos, ainda é possível viver à margem do bulício das grandes cidades, onde muitos batalham pelos seus quinze minutos de fama. Para tal, convidou o poeta Ron Padgett, de 73 anos, para fazer parte deste projecto: é ele o verdadeiro autor dos poemas despojados de “Paterson”.
Laura, por seu turno, também exprime a sua essência através da arte, pintando tudo o que lhe aparece à frente a preto e branco; além disso, sonha com a ideia de se tornar cantora de música country, enquanto vende cupcakes a um fornecedor da zona. Todos pretos e brancos, claro está, denotando uma obsessão mais ou menos inofensiva. O casal apoia-se mutuamente nas suas actividades, sendo a harmonia raramente quebrada. Até ao dia em que Marvin decide pregar-lhes uma partida. Contudo, nem assim se instala um ambiente de discórdia: Paterson encara o incidente como um pequeno revés, não se deixando abater pelo rumo dos acontecimentos.
Isso não significa que se trata de um invertebrado, já que não deixa de intervir numa situação crítica: quando um cliente do bar local tem um acesso de fúria por causa de um amor não correspondido, a coisa podia ter dado para o torto caso o nosso herói se tivesse mantido impávido e sereno. Embora se alimente das palavras, não deixa, quando o momento o exige, de ser um homem de acção. Adam Driver consegue a proeza de transmitir uma imagem de “bom rapaz” sem nunca se tornar enfadonho. E a cena final, onde somos brindados com algo insólito, consagra Paterson como um herói dos tempos modernos: um herói que conduz um autocarro com a dignidade que qualquer profissão merece e que não precisa de grandes feitos para ser grandioso.
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