Mais de trinta anos após a estreia no festival de Cannes, “Paris, Texas” ainda não ganhou um único cabelo branco. Mérito de Sam Shepard, cujo argumento contém monólogos e diálogos memoráveis, mas também de Wim Wenders, que soube dar corpo a uma das mais belas narrativas do cinema moderno. Dirk Bogarde, presidente do júri em 1984, admitiu que a atribuição da Palma de Ouro não representou uma dor de cabeça, já que nunca houve dúvidas relativamente à escolha do vencedor.
“Paris, Texas” é um road movie sobre um homem em busca de si próprio. Um homem que perdeu tudo e a quem nada mais resta que não seja vaguear pelo deserto texano. As imagens iniciais são de uma beleza rara, e aqui o trabalho de fotografia realizado por Robby Muller contribuiu, e muito, para converter esta longa-metragem num filme de culto. Estamos perante uma paisagem árida, hostil, onde praticamente não se vê vivalma. Travis (Harry Dean Stanton) surge no ecrã com roupa coçada e olhar vazio, uma criatura minúscula perante a imensidão que o rodeia. No momento em que tenta matar a sede naquela terra de ninguém, perde os sentidos, vítima de exaustão. Na cena seguinte, Travis toma finalmente contacto com a civilização, uma vez que se encontra num hospital. E, embora se recuse a falar, a descoberta de um nome e de uma morada num dos bolsos desencadeia um telefonema para o irmão, Walt (Dean Stockwell), que não hesita em vir buscá-lo.
Descobrimos que Travis estava desaparecido há quatro anos, toldado por um desgosto imenso, ainda que envolto em mistério. Eis uma das razões por que “Paris, Texas” nos “prende” tanto: a história é revelada de forma gradual, sem pressas, algo que nos permite conhecer melhor cada uma das personagens. Tudo sob a banda sonora de Ry Cooder, magnífica. Walt nunca desiste do irmão, que tenta fugir novamente para o deserto. Além disso, o facto de teimar em não proferir uma única palavra só torna o regresso a Los Angeles ainda mais penoso. Dean Stockwell tem aqui um desempenho magistral, embora se trate de um papel secundário. Juntamente com a mulher, Anne (Aurore Clément), tem tomado conta de Hunter, o filho de oito anos que Travis abandonou. Uma vez chegados a casa, o desejo de reatar os laços intensifica-se, tornando-se a reconquista da confiança de Hunter uma prioridade para o pai.
Aos poucos, a cumplicidade entre ambos aumenta, ao ponto de partirem juntos para Houston. Motivo? Encontrar a mãe de Hunter, Jane (Nastassja Kinski), que também desapareceu quatro anos antes. A única pista de que dispõem é o depósito de uma quantia num determinado banco no dia 5 de cada mês, informação que os levará ao seu encontro. O petiz reconhece-a de imediato; pai e filho encetam uma perseguição pela auto-estrada que os levará ao local de trabalho de Jane: um bar de striptease. Contudo, este contém uma particularidade: não há contacto físico entre profissionais e clientes, já que se encontram separados por um vidro. Além disso, o anonimato é garantido, pois Jane vê apenas um espelho à sua frente.
Isto será providencial para que Travis se assegure de que Jane não leva clientes para casa; no entanto, ao contrário de outros tempos, não se encontra dominado pelo ciúme – pretende apenas ter a certeza de que a ex-companheira reúne as condições necessárias para ficar com o filho. E eis que começam alguns dos monólogos mais primorosos da história do cinema, decisivos para o rumo de ambas as personagens.
“Paris, Texas” é um filme povoado por uma imensa intimidade emocional, o que contrasta com a imponência estética dos grandes espaços – como se Edward Hopper tivesse servido de inspiração para algumas das mais belas cenas. E, apesar da frieza a que somos votados em território urbano, será possível, finalmente, encontrar um rumo. Por vezes, é através da redenção dos outros que encontramos a nossa.