O primeiro filme de Quentin Tarantino, “Cães Danados”, estreou-se com estrondo há 23 anos, abrindo caminho para o enorme sucesso de “Pulp Fiction”. Desde essa altura, o realizador faz os filmes que quer fazer, ao ritmo de que gosta, e o resultado é que não assinou até hoje nenhum filme mau. Cada fita que assina tem uma voz, uma atitude e um estilo claramente inimitáveis.
“Os Oito Odiados”, oitavo filme de Tarantino, inspira-se em westerns de uma era há muito desaparecida. Foi filmado em Ultra-Panavision 70mm, um processo arcaico e dispendioso, usado pela última vez nos anos 70.
Pensado inicialmente como uma sequela de “Django Libertado” o filme tem, no entanto, um humor negro e uma violência que fazem lembrar “Cães Danados”. Como em qualquer fita do autor, há algo que podemos ter como certo: a história é tudo menos previsível.
A feroz assassina Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) é passageira involuntária numa diligência que atravessa as paisagens geladas do Wyoming. O seu captor, o caçador de recompensas John Ruth (Kurt Russell), faz questão de entregá-la viva à justiça, para ser enforcada pelos seus crimes.
A meio da viagem, Ruth dá uma relutante boleia a dois passageiros inesperados: primeiro ao Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), caçador de recompensas e militar veterano da Guerra Civil e, depois, ao futuro Xerife de Red Rock, Chris Mannix (Walton Goggins, que conhecemos da série Justified).
Para fugir a uma tempestade de neve, são forçados a procurar abrigo numa pequena estalagem na montanha, onde encontram quatro figuras suspeitas: Oswaldo Mobray, o novo carrasco de Red Rock (Tim Roth), o velho general Sulista Sanford Smithers (Bruce Dern), o estalajadeiro duvidoso Mexican Bob (Démian Birchir) e o sinistro vaqueiro Joe Gage (Michael Madsen).
Adensa-se o nevão. Os oito perigosos patifes (alguns mais perigosos que outros) ficam isolados do exterior, por detrás de uma porta que só se fecha com madeira e pregos. As coisas depressa descambam, entre uma carta de Abraham Lincoln, um bule de café envenenado e um balázio no escroto. Os oito começam a falecer à bruta, e o sangue corre aos baldes. O ritmo vagaroso (“tipo melaço!”, como diz John Ruth) e a contenção inicial acabam por explodir em algumas das cenas mais violentas da carreira do realizador.
“Os Oito Odiados” não será um filme tão icónico como “Pulp Fiction”, mas tem estampado o léxico de Tarantino: diálogos excelentes, uma escrita incendiária, a memorável banda sonora da partitura de mestre Morricone e vários cúmplices da sua trupe habitual de actores.
Samuel L. Jackson, no papel de Warren, faz uma espécie de Poirot, perspicaz mas consideravelmente mais perverso. Se há alguém neste planeta que sabe debitar os diálogos épicos de Tarantino, é ele de certeza.
Kurt Russell diverte-se com o anti-herói bigodudo John Ruth, mau como as cobras, que não hesita em esmurrar a sua prisioneira regularmente. Tim Roth é um sacana de um carrasco bem-falante, e Michael Madsen não precisa de falar muito para roubar todas as cenas em que entra. Todos os actores são potenciais vilões, com carisma até à medula.
Na velha estalagem desenrola-se um mistério digno de Agatha Christie – nem todos são o que parecem ser, e a chave é a femme fatale Daisy Domergue, um demónio de carne e osso que passa o filme a rosnar, a cuspir e a levar pancada, conseguindo irritar toda a gente com o seu mau feitio. Ocasionalmente deixa adivinhar um outro lado, mas é quase sempre uma megera detestável. Dotada de uma rijeza a toda a prova, Daisy percorre um doloroso arco narrativo com a cara. Começa com um discreto olho negro, até se tornar um monstro sangrento e desdentado.
O filme tem um sub-texto mais profundo, ainda que seja um thriller eficaz. Em causa está a tensão racial que divide hoje em dia a América, espelhada no confronto entre Warren, antigo soldado negro que lutou pelo Norte na Guerra Civil, e os dois personagens abertamente racistas, o Xerife e o velho General sulista. “Os Oito Odiados” não é só sobre o passado da América. É, também, sobre o seu presente: Tarantino pinta o retrato de um país dividido, em que brancos e negros acreditam apenas numa coisa: no poder das armas. Que o consiga fazer enquanto, ao mesmo tempo, nos mantém agarrados à narrativa, é testemunho do seu enorme talento como cineasta.
Nem todos gostam do seu estilo e, aqueles que não tenham estômago para violência a rodos e obscenidades em doses industriais, farão melhor em evitar “Os Oito Odiados”. Para os apreciadores do brilhante realizador, é um filme indispensável.
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