Outubro é o mês do Halloween, uma época em que os fãs de cinema de terror aproveitam para ver e revisitar filmes do género ao longo de todo o mês. Coincidentemente, é também o mês do Sitges Film Festival – Festival Internacional de Cinema Fantástico da Catalunha. Durante dez dias, o festival oferece uma programação variada, que vai do terror ao fantástico, passando por thrillers intensos. Por isso, era quase inevitável acabar por lá, ainda que apenas por uns dias.
Percorro com especial interesse os clássicos, muitos deles restaurados, exibidos nas secções Seven Chances e Brigadoon, sendo esta última cuidadosamente programada por Diego López-Fernández, um dos directores de programação e director adjunto do festival. A sua dedicação à exibição de filmes obscuros, alguns associados à tradição do cinema de série B e trash, todos dignos de serem revisitados com um olhar contemporâneo e sem ironia, reflecte uma profunda valorização destas obras menos reconhecidas.
Embora o cinema de género, incluindo as produções de série B, esteja a ganhar reconhecimento por parte de uma nova geração que se mostra, talvez, menos crítica e preconceituosa em relação a este tipo de cinema, ainda existem muitos filmes fora do cânone que merecem uma nova oportunidade de serem apreciados numa sala de cinema.
É o caso de “Vampyros Lesbos“ (1971), ou Las Vampiras em espanhol. Uma fusão de erotismo e psicadelismo, proveniente da fase mais abstracta da carreira de Jesús Franco, uma obra indissociável do magnetismo da actriz Soledad Miranda. Embora não constitua a interpretação mais fiel do mito do vampiro, é inegável que se destaca como um dos filmes de exploitation mais intrigantes de sempre.
Franco estava no auge das suas capacidades estilísticas, e o seu profundo apreço por música, fruto da sua formação em jazz antes de se dedicar aos filmes, intensifica a atmosfera hipnótica deste sonho febril. Já a beleza, os movimentos e os close-ups no rosto de Soledad Miranda conferem à actriz um papel essencial na construção da identidade do filme. A sua imagem, condenada paradoxalmente a uma juventude eterna devido ao seu trágico destino, ao falecer num acidente de viação aos 27 anos, é, sem dúvida, um dos principais factores que contribuíram para a transformação desta obra num clássico de culto, mais de 50 anos após a sua estreia.
Embora o olhar que permeia as imagens de Vampyros Lesbos seja um olhar masculino, é possível reconhecer uma subversão nesta sinfonia elegantemente executada. O filme expõe, de maneira incisiva, a vulnerabilidade masculina face à complexidade feminina, onde os homens, incapazes de apreender a totalidade das experiências femininas, revelam os seus medos e incertezas.
Contudo, para quem estiver à espera de um filme de vampiros tradicional, como os clássicos britânicos da Hammer ou os da Universal, Vampyros Lesbos não corresponderá às expectativas, especialmente se a intenção for mergulhar numa adaptação directa da obra de Bram Stoker. Os filmes do cineasta espanhol, especialmente os dos anos 70, distinguem-se pelo seu ritmo contemplativo e pela tonalidade onírica. São impulsionados pela música, pelos corpos e pelos cenários estonteantes, enquanto as histórias, finas e frágeis, permanecem (quase) sempre em segundo plano.
Entre os cerca de 200 filmes que realizou, há verdadeiros diamantes em bruto, não lapidados, frequentemente filmados em poucos dias e com recursos financeiros muito limitados. Vampyros Lesbos é uma dessas jóias, e poder revê-lo pela primeira vez em sala, no magnífico Cinema Prado, foi uma experiência libertadora, com um público eclético, hipnotizado pelo encanto de Soledad Miranda, disposto a deixar-se seduzir.
Noutra ocasião, durante uma sessão matinal, foram projectados dois clássicos do cinema de terror: Drácula e Frankenstein. Não me refiro aos míticos filmes protagonizados por Bela Lugosi e Boris Karloff, mas sim a “Count Dracula” (1970) e “Drácula, Prisioneiro de Frankenstein” (1972), também realizados por Jesús Franco e exibidos em sessão dupla.
Em Count Dracula, Christopher Lee volta a interpretar o mais conhecido dos vampiros, desta vez livre das influências e da estética garrida dos estúdios Hammer. Com um elenco de luxo, que inclui nomes como Klaus Kinski, Herbert Lom, Soledad Miranda e Jack Taylor (que esteve presente na sessão), oferece uma das adaptações mais fiéis da obra de Stoker, em contraste com a abordagem mais experimental de Franco em Vampyros Lesbos. Curiosamente, Klaus Kinski, que neste filme constrói um retrato perturbador da loucura como Renfield, quase sem diálogos, viria anos depois a interpretar o famoso Conde no remake de Werner Herzog do seminal filme de F.W. Murnau, “Nosferatu” (1979).
Restaurado a partir de cópias de exibição espanholas, francesas e alemãs, a sessão prosseguiu com a apresentação da versão mais completa conhecida até hoje de Drácula, Prisioneiro de Frankenstein. Inspirado pelos clássicos de monstros da Universal, o filme revela-se um autêntico caldeirão de influências e referências, proporcionando uma viagem pelo mundo gótico das criaturas mais famosas. É um daqueles casos que nos mostram que é possível encontrar prazer genuíno no que muitos consideram apenas entretenimento de segunda.
Ao assistirmos a certos filmes de série B, somos confrontados com uma liberdade criativa e estética frequentemente ausente nas produções de estúdio mais convencionais e comerciais. Neste universo de absurdo e exagero, o ridículo e o grotesco tornam-se fontes de diversão e surpresa. As falhas técnicas e narrativas não desvalorizam a experiência; pelo contrário, convidam-nos a apreciar a arte na sua imperfeição. O que, à primeira vista, pode parecer apenas um produto de baixo orçamento, proporciona, na verdade, uma experiência cinematográfica rica e surpreendente, onde a diversão reside na sua autenticidade — e, claro, nos rudimentares, mas magníficos efeitos práticos e ópticos.
E, por falar em seres mitológicos, era inevitável que noutro dia do festival algo mais peludo fizesse a sua aparição. Após a exibição do documentário “Call Me Paul”, que aborda a vida e obra de Paul Naschy, o actor célebre por interpretar o lobisomem Waldemar Daninsky, foi exibido o novo restauro em 4K de “Doctor Jekyll y el Hombre Lobo”, realizado pelo argentino radicado em Espanha, León Klimovsky.
Neste filme da extensa saga, Waldemar Daninsky, ou “El Hombre Lobo”, embarca numa busca desesperada por uma cura para a sua licantropia, viajando até Londres na esperança de consultar o neto do infame Dr. Henry Jekyll. Contudo, como era de esperar, o resultado do procedimento revela um monstro ainda mais selvagem.
Uma odisseia vibrante e repleta de surpresas, onde a imoralidade e o glamour se entrelaçam de forma provocante, ao som de uma banda sonora jazzy e funky que evoca a Londres dos anos 70. Considerado uma das melhores obras do terror europeu e, certamente, um dos filmes de lobisomens mais alucinantes, Doctor Jekyll y el Hombre Lobo, já perto do final, inclui uma transformação memorável numa discoteca, onde as luzes estroboscópicas acentuam a força visual do momento —uma sequência que suscitou aplausos entusiásticos.
É importante notar que muitos filmes de Paul Naschy, León Klimovsky e Jesús Franco foram rodados fora de Espanha devido ao regime ditatorial fascista, que censurava produções que podiam transmitir uma má imagem do país. Assim, muitos destes filmes foram concebidos com foco nas vendas internacionais, especialmente nos mercados britânico e norte-americano, permitindo que as obras destes cineastas conquistassem reconhecimento no cinema de terror além-fronteiras. Curiosamente, na altura da sua estreia, foram produzidas duas versões de Doctor Jekyll y el Hombre Lobo, uma censurada e adaptada para os cinemas espanhóis e outra versão “despida” para distribuição internacional. Em Sitges, assistimos à versão despida, claro!
O restauro destes e outros filmes não canónicos é crucial para preservar a diversidade do cinema, assegurando que obras que poderiam cair no esquecimento não se percam numa qualquer cave bolorenta. Estas iniciativas são especialmente importantes para os filmes de género, como os de terror e fantásticos, que frequentemente desafiam as normas estéticas e narrativas das produções mainstream, acabando por ser apreciados apenas por um público de nicho.
Obras muitas vezes censuradas ou mal recebidas à sua época ganham uma nova vida, permitindo ao público entender o contexto social e cultural em que foram criadas, além de incentivar saudáveis discussões sobre o seu impacto e relevância na História do Cinema. Acima de tudo, estas sessões proporcionam uma experiência desinibida, celebrando a diversidade cinematográfica e reafirmando o cinema como uma forma poderosa de entretenimento. Em “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho, a certa altura surge uma célebre máxima do exibidor brasileiro Luiz Severiano Ribeiro: “cinema é a maior diversão”. Esta frase, tão emblemática, capta perfeitamente o espírito destas sessões, onde filmes há muito esquecidos são redescobertos, permitindo aos novos e velhos espectadores não só reviver obras do passado, mas também reencontrar o prazer essencial que o cinema, na sua essência, proporciona.
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