Toda a gente que o jornalismo desportivo, além de obedecer a regras deontológicas muito próprias, não resiste a um bom trocadilho – e, quanto mais fácil e óbvio, melhor. Por isso, desde que na época passada as equipas portuguesas começaram a apostar em jogadores nórdicos, que os senhores de A Bola, Record e O Jogo andam todos doidos. Sempre que um desses jogadores marca um golo mais ou menos decisivo, lá vem a capa da praxe, com o trocadilho do costume e a palavra “viking”. Acham que estou a a abusar? Prova a. Prova b. Prova c.
Por isso, se um jornalista desportivo escrevesse sobre a edição deste ano do MOTELX, o Festival Internacional de Terror de Lisboa, de certeza que o título seria mais ou menos algo como o meu. Pelo segundo ano consecutivo, são os filmes nórdicos a convencer o júri e a limpar o prémio principal. Depois do “Speak no Evil”, em 2022, foi outro dinamarquês a deixar marca no palmarés. O filme chama-se “Superposition” e é assinado por Karoline Lyngbye.
Esta foi a 17ª edição daquele que é já um dos grandes eventos cinematográficos do ano em Portugal. Apesar de o terror e o fantástico continuarem a ser um género de nicho, longe vão os tempos em que estes eram apenas filmes para maluquinhos, nerds e outros freaks. A indústria está cada vez mais aberta e disponível para este cinema, o terror deslocou-se das margens para o centro, os canais de distribuição multiplicam-se (já ouviram falar do FilmTwist, um dos patrocinadores do festival e o serviço de streaming português dedicado exclusivamente ao género?) e a produção é cada vez maior (em quantidade e em orçamento). Até Portugal, onde durante anos se foram contando pelos dedos das mãos os títulos dedicados ao fantástico (este ano, na secção Quarto Perdido, dedicada ao cinema nacional, foi preciso alargar muuuuito as definições do fantástico para se incluir “Tarde Demais”, o survival movie sobre o naufrágio de um barco de pesca no Tejo, do José Nascimento), estreou este ano “A Semente do Mal”, uma longa de terror à séria assinada por Gabriel Abrantes.
Contudo, o grande nome deste ano foi mesmo Brandon Cronenberg. O jovem realizador canadiano, um dos nomes mais estimulantes a trabalhar no género na actualidade (e que, mesmo assim, nunca teve um filme com estreia comercial no nosso país (lol)), parece estar a viver bem com o apelido, e a conseguir não só responder às expectativas como a não ficar simplesmente a viver dos créditos do nome. E fá-lo com as mesmas armas que o pai utilizou para construir o seu corpo de trabalho: o body horror e a relação entre o corpo humano e a tecnologia ou a reflexão sobre a mente e a consciência. O seu mais recente “Infinity Pool”, que finalmente pudemos ver em ecrã grande, é tudo isso mais uma alfinetada aos super-ricos. E ainda tem a Mia Goth, que ultimamente parece estar em todo o lado onde vale a pena estar.
A história do 17º MOTELX faz-se também com os restantes vencedores. “Gangrene”, do espanhol Ignacio Gil-Toresano Fernández, venceu o prémio para melhor curta, com um filme sobre epidemias que evoca ainda o muito recente pânico da emergência higiénico-sanitária da Covid (até quando?); “Irati”, do também espanhol Paul Urkijo Alijo, foi o escolhido do público, num épico sobre a reconquista do País Basco aos mouros que prova, pela enésima vez, como a fantasia e o sword and sorcery estão bem de saúde; “De Imperio”, de Alessandro Novelli, foi o representante português no palmarés, com o galardão para melhor curta nacional, uma animação surrealista que já tinha estado em Locarno; “Down Under”, de Lola Ramos, é outra animação que venceu o prémio microCURTA, e que pode ser vist no maravilhoso mundo do YouTube; e Tiago Gomes, com “Trauma”, levou para casa o prémio para melhor guião, na competição paralela da especialidade.
Finalmente, mas não menos importante, destaque para um filme que foi exibido no festival. “Satan Wants You”, de Steve J. Adams e Sean Horlor, é um documentário convencional, de muitas cabeças falantes e imagens de arquivo, com uma história bizarra que vale a pena ser visto por toda a gente para ver se evitamos que a história se repita. O filme debruça-se sobre o livro “Michelle Remembers”, em que um pseudo-psiquiatra conta como recuperou as memórias reprimidas de uma utente sua, Michelle Smith, que havia sido entregue a um culto satânico quando era criança, onde bebeu urina, sacrificou animais e comeu bebés(!). A história é completamente absurda e parece ser difícil acreditar que alguém iria engolir aquilo, mas a verdade é que gerou um autêntico pânico que, durante a década de 80, levou a que dezenas de outros pseudo-terapeutas enganassem meio mundo, os talk shows da tarde gastassem horas a fio a especular sobre essas seitas subterrâneas e o Anton LaVey ficasse com a reputação manchada para sempre. Esse “pânico satânico” é tão risível que… está a acontecer outra vez, com os QAnon e os pizzagates desta vida. A sério, pessoal, onde é que vocês têm a cabeça?
Nota: Acho que depois deste texto vou actualizar o currículo e tentar uma candidatura espontânea junto d`A Bola. Se não me virem mais por aqui a escrever sobre música ou cinema, procurem-me no mundo desportivo. Ou então não, recordem-me só como o tipo que fez um título sobre o MOTELX deste ano com a palavra “Viking”.
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