Impossível não fazer comparações com “Bird”, a obra-prima realizada por Clint Eastwood em 1988, quando vemos “Miles Ahead”. Em ambos os filmes, estamos perante figuras maiores do jazz, cujas vidas foram marcadas por inúmeros desaires – apesar do sucesso monumental que tanto Charlie Parker como Miles Davis alcançaram. E, tal como Eastwood, Don Cheadle – que co-produziu e dirigiu “Miles Ahead” – é um amante acérrimo de jazz. Ou, no caso, de “música social”, expressão que Davis considerava mais ecléctica.
Ao contrário do que é habitual vermos em biopics mais convencionais, Cheadle não procura adoptar uma sequência linear, ou seja, não perde tempo com a infância em St. Louis ou com o início da carreira, período em que Davis tocava anonimamente em diversos clubes nova-iorquinos. Em alternativa, encontramos o músico em plena crise criativa, já em meados dos anos 1970, a viver como um recluso. Apesar da pressão exercida pela Columbia Records, a célebre editora discográfica, para produzir material novo, Davis opta por fazer ouvidos moucos. O seu dia-a-dia é passado a fumar; consumir cocaína; ligar a estações de rádio queixando-se de passarem os discos errados; desferir golpes sobre um saco de boxe repetindo a expressão: get it back!
O trompetista parece ter perdido a “chama” que lhe permitiu compor álbuns como “Kind of Blue”, um dos mais vendidos de sempre – e que ouvimos na primeira metade desta longa-metragem. No meio deste torpor surge Dave Braden (Ewan McGregor), um suposto jornalista da Rolling Stone, apostado em escrever um artigo sobre o regresso da estrela à cena musical. E embora este primeiro encontro decorra debaixo de xutos e pontapés, os laços acabam por se estreitar, sendo a relação entre ambos capital neste filme.
Paralelamente conhecemos Frances Taylor (Emayatzy Corinealdi), a bailarina com quem Davis se casou na década de 1950. De forma hábil, Cheadle faz-nos recuar cerca de vinte anos, sendo o flasback fácil de identificar, já que Davis surge agora de cabelo curto e com uma indumentária mais ortodoxa. E é aqui que os demónios têm a sua origem: a partir do momento em que pede a Frances para deixar de dançar, reconhecendo tratar-se de um enorme sacrifício, condena o matrimónio ao fracasso. Como se tal não bastasse, ainda insiste em menosprezá-la, uma vez que a violência doméstica e o envolvimento com outras mulheres passam a ser prática corrente. O inevitável acontece: a mulher cujo rosto surge na capa do álbum “Some Day My Prince Will Come” sai de casa, deixando Davis destroçado.
Só e mergulhado em auto-comiseração e remorsos, o músico crê não haver qualquer possibilidade de redenção. As drogas e o álcool são agora a sua companhia diária. Para além do jornalista escocês, cuja pronúncia cerrada desencadeia alguns mal-entendidos hilariantes. E para quem Davis acaba por funcionar como mentor, já que lhe ensina a defender-se das investidas de terceiros através do saco de boxe – seguramente, uma das melhores cenas deste biopic. A aparente fragilidade de Braden contrasta com o “nervo” do trompetista, pese embora esteja em constante sofrimento devido a um problema de saúde na anca. E, graças a esta convivência cada vez mais próxima – bem como ao poder redentor da arte -, a apatia do compositor começa a dar lugar a uma espécie de renascimento. Será a salvação possível, afinal?
Desilude-se quem esperava encontrar um musical: há períodos da carreira de Davis que são inteira e intencionalmente ignorados, nomeadamente o de fusão. O mais importante aqui é contar uma história. De preferência “com atitude”, como ouvimos no prólogo. Dito e feito: atitude não lhe falta. Don Cheadle, que já conquistou uma nomeação para o Oscar graças ao magistral desempenho em “Hotel Ruanda”, tem aqui o papel da sua carreira. E que cool fica em palco. Start the ball rolling, Miles!
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