Mestres Japoneses Desconhecidos foi o título de um ciclo programado em 2021 pela The Stone and The Plot, distribuidora independente portuguesa de cinema que também editou em língua portuguesa o livro de Donald Ritchie sobre Yasujiro Ozu, leitura (quase) obrigatória para todos os amantes da obra do cineasta.
Por cada Yasujiro Ozu, Akira Kurosawa ou Kenji Mizoguchi, existe um Tomotaka Tasaka, Tomu Uchida e Kozaburo Yoshimura, realizadores fora do cânone com filmes nunca estreados fora do Japão. Foi com este pressuposto que, no ano passado, chegaram a Portugal três obras-primas restauradas, três raridades do estúdio Nikkatsu de Tasaka, Uchida e Yoshimura.
Tratando-se do estúdio mais antigo do Japão, os filmes da Nikkatsu podem funcionar como verdadeiras testemunhas das mudanças da sociedade nipónica ao longo do século XX, e da própria linguagem do Cinema, seja à conta dos travellings de Kenji Mizoguchi ou do estilo pop de Seijun Suzuki, no âmbito das produções mais exploitation do estúdio.
No próximo dia 3 de Novembro chega às salas a segunda parte do ciclo, Mestres Japoneses Desconhecidos II – e que segunda parte! Desta vez, os mestres escolhidos por Miguel Patrício e Daniel Pereira foram Koreyoshi Kurahara, Yasuzo Masumura e Kirio Urayama.
“Johnny, Coração de Vidro” (1962) de Koreyoshi Kurahara, é o filme que arranca o ciclo e talvez um dos mais belos filmes imperfeitos que vi recentemente. Ao referir a sua imperfeição não quero com isso rejeitar a sua qualidade artística, e muito menos a sua repercussão emocional. Podemos encontrar alguns lugares-comuns na narrativa mas, acima de tudo, encontramos um filme de coração cheio, movido pela força da interpretação de Izumi Ashikawa, numa viagem tortuosa e melodramática pelas paisagens de Hakkaido e a praia de Wakkanai.
Com uma história digna de fazer chorar as pedras da calçada, acompanhamos Mifune, uma jovem fugitiva de um esquema de tráfico humano, que acaba por se afeiçoar pelo seu salvador Joe, interpretado por um Jô Shishido em início de carreira, mais famoso no Ocidente pelas suas interpretações tresloucadas e violentas nos filmes de Seijun Suzuki, tais como “Branded to Kill” (1967), “Youth of the Beast “(1963) ou “Gate of Flesh” (1964), este último possivelmente um dos mais belos (e estéticos) filmes sobre a ressaca do Japão pós-Segunda Guerra Mundial, que ultrapassa por muito as barreiras de filme de género.
Koreyoshi Kurahara já tinha dado provas do seu talento dois anos antes, com “The Warped Ones”(1960), um dos filmes mais considerados do realizador fora do Japão – e uma espécie de primo distante de “À bout de souffle” (1960), movido pelo som do jazz que chega da América. Nesse filme alucinante, em pouco mais de uma hora acompanhamos um jovem delinquente autodestrutivo, sem qualquer sentido de moral, num Japão que não soube acolher uma geração de jovens que não se encaixava na sociedade.
Neste mundo de anti-heróis e anti-heroínas de “Johnny Coração de Vidro” encontramos esse deslocamento mas, enquanto o delinquente Akira de “The Warped Ones” é movido por uma espécie de vingança ideológica, Mifune é movida pelo Amor. Mifune acredita implacavelmente no amor, sem ter em conta as vezes que já foi abandonada e marginalizada. Neste filme especial, o rosto da actriz Izumi Ashikawa é uma espécie de estado absoluto, onde apesar de todas as vicissitudes da vida ainda cabem todos os sonhos do mundo.
O segundo filme do ciclo é “A Vida de Uma Mulher“, uma obra complexa e tecnicamente irrepreensível de Yasuzō Masumura (talvez o mais conhecido dos desconhecidos), baseada numa peça de Kaoru Morimoto, alvo de algumas adaptações ao grande ecrã, uma delas por Kaneto Shindô (“Onibaba”,“The Naked Island”).
Kei, uma órfã, expulsa de casa pelos seus tios de modestas raízes, casa-se inesperadamente com o filho mais velho de uma família de industriais burgueses, no momento tenso em que o Japão entra na escalada militar após a sua vitória sobre a Rússia no início do século XX. Pouco a pouco, e numa sucessão de autênticos jogos familiares e económicos, Kei toma as rédeas de um traiçoeiro império à custa da sua própria felicidade.
Através dos olhos de Kei compreendemos e acompanhamos as contradições económicas e sociopolíticas de um país, desde a vitória sobre a Rússia, em 1905, até à sua capitulação em 1945, após as atrocidades em Hiroshima e Nagasaki. Saltando ao longo da história entre as eras Meiji, Taishô e Shôwa, o realizador orquestra uma radiografia de um país agressivo, fechado sobre si mesmo e opressor que faz das suas mulheres escravas de uma nação.
Yasuzō Masumura sabe usar o espaço da casa típica japonesa, com os painéis de correr shōji, para construir uma série de prisões para Kei nesta história de crescimento, sacrifício e colapso. “A Vida de Uma Mulher” é um retrato de uma vida sem saída que Yasuzo Masumura descreve com compaixão, num filme que muitas vezes pisca o olho ao terror, um género que Masumura incorporaria em filmes como “Blind Beast” ou “Irezumi”, dois dos meus favoritos de um obra vasta ainda por descobrir. A câmara de Yasuzo Masumura consegue a proeza de transformar a história pedagógica de “A Vida de Uma Mulher” num filme intenso e transformativo. Coincidência, ou não, refira-se que no início da sua carreira Masumura foi assistente de realização de Kenji Mizoguchi e Kon Ichikawa, e privou pessoalmente com Federico Fellini, Luchino Visconti e Michelangelo Antonioni no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Itália.
Até ao momento, todos os filmes seleccionados para os Mestres Japoneses Desconhecidos tinham sido produções Nikkatsu, mas “A Vida de Uma Mulher” é uma produção Daei, a casa responsável por várias obras de Akira Kurosawa e de Kenji Mizoguchi, mas também por ter iniciado séries de acção tão famosas como “Zatoichi” e “Gamera” ou as incríveis trilogias de fantasia folk “Daimajin” e “Yokay Monsters”…mas isso fica para outra altura. Permitam-me sonhar que os Mestres Desconhecidos Japoneses II é apenas o início de um projecto mais amplo, que engloba mais mestres japoneses desconhecidos oriundos de estúdios como a Daiei, Shochiku, Toei ou Toho!
Voltando ao ciclo, a terceira proposta é “A Mulher Que Eu Abandonei”, de Kirio Urayama, baseado no romance homónimo de Shûsaku Endô – o mesmo autor de “O Silêncio”, livro sobre a presença dos padres jesuítas portugueses durante o período Togugawa (1603-1867).
“A Mulher que eu Abandonei” joga com a crise existencial do carrancudo Tsutomu Yoshioka, um assalariado numa fábrica de automóveis preso entre as potencialidades de um casamento arranjado com Mariko, sobrinha do seu patrão, e a veracidade de uma relação anterior com Mitsu, antiga paixão de juventude que ele abandonara, a conselho de um amigo, por não ser sofisticada o suficiente. Segundo o autor no posfácio do seu romance, a personagem de Mitsu personifica o Cristo “que todos nós deixamos todos os dias” mas neste adaptação Mitsu personifica também a saudade da revolução política que não regressará.
As duas primeiras propostas do ciclo estrearam em 1962 e “A Mulher Que Eu Abandonei” em 1969, uma diferença de sete anos que nos permite observar à distância as transformações na sociedade e nas relações de trabalho que ocorreram no Japão, numa época de reconfiguração da identidade japonesa.
Durante o período pós-guerra, o rápido desenvolvimento económico do Japão ficou conhecido por “milagre japonês”, e essa faceta de nação resiliente permitiu que fosse internacionalmente reconhecido como um país desenvolvido e industrializado, porém fez-se à custa da felicidade pessoal de muitos, assente numa dinâmica social muitas vezes hipócrita. Talvez por isso Kirio Urayama proponha, no filme, uma hipotética Terceira Guerra Mundial, numa sequência onírica a cores que contrasta com o resto do filme a preto e branco.
Retrato de um certo desencantamento, “A Mulher que eu Abandonei” é um dos filmes essenciais da Nova Vaga japonesa mas, infelizmente, nunca foi distribuído comercialmente e por isso merece agora a nossa melhor atenção.
O Ciclo dos Mestres Japoneses Desconhecidos II chega às salas portuguesas com o objectivo de demonstrar que existe mais na cinematografia japonesa clássica do que aquilo que já vimos ou revimos. Posso arriscar-me a dizer que enquanto os mestres japoneses desconhecidos estiverem em exibição, dificilmente encontrarão cinema tão bom na sala ao lado. O nome do ciclo diz tudo, por isso façam um favor a vocês mesmos e partam para a descoberta destes mestres desconhecidos.
“Mestres Japoneses Desconhecidos II” estará em exibição em Lisboa, no Cinema City Alvalade, de 3 a 9 de Novembro, no Porto, no Teatro Municipal do Porto – Rivoli, a 10 de Novembro, em Braga, no LUCKY STAR – Cineclube de Braga, nos dias 8, 22, 29 de Novembro (com o 1º ciclo nos dias 1 e 15 do mesmo mês) e em Coimbra, na Casa do Cinema de Coimbra, em Dezembro.
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