Não é necessário fazermos um grande esforço para imaginarmos Daniel Day-Lewis num papel obsessivo, com queda para o perfeccionismo: esse desejo de deixar para a posteridade uma marca de mestria já se lhe colou à pele há muito tempo. Depois de trabalharem juntos em “There Will Be Blood” (2006), Paul Thomas Anderson e Day-Lewis reuniram-se mais uma vez – sendo esta, em princípio, a última jornada em conjunto. O actor, tomado por uma tristeza profunda durante a rodagem de “Linha Fantasma” (“Phantom Thread no original”), anunciou que se retiraria de vez, abandonando o ofício que o tornou célebre.
Parafraseando Neil Armstrong, o contributo de Day-Lewis pode ter sido um pequeno passo para um (só) homem, mas foi um grande salto para toda a indústria do entretenimento. Aliás, recorrer à palavra “entretenimento” acaba por ser redutor, tendo em conta que estamos perante uma obra-prima. Porque é de arte que falamos quando falamos de “Linha Fantasma”. Paul Thomas Anderson terá finalmente alcançado a sua magnum opus, a sua obra maior, embora seja considerado um dos melhores cineastas contemporâneos há um par de décadas. Recorde-se que “There Will Be Blood” foi eleito o melhor filme da década de dois mil pela prestigiada “Rolling Stone”.
Day-Lewis é Reynolds Jeremiah Woodcock, um costureiro irascível, procurado pela realeza europeia e habituado a uma rotina de que não se desvia um milímetro. Dessa rotina fazem parte duas mulheres: a irmã e confidente, Cyril (Leslie Manville) e uma “musa” temporária, de quem Woodcock rapidamente se cansa quando o efeito de “novidade” se desvanece. É graças a um conselho da irmã que o costureiro conhece Alma (Vicky Krieps), uma criada de uma estalagem onde se instala para atenuar as saudades da mãe, em quem pensa constantemente. No momento em que pede o pequeno-almoço, é notório que o apetite não se reduz aos perecíveis: a nova musa parece ter sido encontrada.
Abismada com o interesse que despertou num homem tão sofisticado, Alma sucumbe ao amor à primeira vista, e depressa se instala na casa de moda, situada no centro de Londres. Simultaneamente manequim e assistente, Alma torna-se cada vez mais próxima de Woodcock, passando a frequentar os lugares da moda com as suas criações. No entanto, à semelhança de mulheres anteriores, o desejo de atenção e a relutância em respeitar escrupulosamente os rituais adoptados há anos acabam por fazer estragos, desencadeando as primeiras discussões. À medida que o artista se revela um homem caprichoso e com mau génio, tendo a irmã como sombra onde quer que esteja, a ideia de descartabilidade depressa surge no horizonte. Logo, é urgente forjar novas estratégias com vista à sobrevivência da relação.
E Alma está à altura do desafio: rejeitando a ideia de abandono, a sua missão passará a partir de agora por dominar o “bicho” colérico, ainda que de forma subtil. A musa submissa, que não pode sequer perturbar o criador ao pequeno-almoço, dará lugar a uma figura irreverente, uma figura que não se ajusta à rigidez daquela casa. Ao ponto de haver uma inversão de papéis, já que Reynolds deixa de conseguir controlar tudo o que se passa à sua volta, ao contrário de outros tempos. O confronto com o imponderável acontece, obrigando-o a ajustar-se a uma realidade que não domina. Com consequências surpreendentes.
Há muito que não se via uma relação tão perturbadora no cinema, fazendo por vezes lembrar a atmosfera tóxica de “The Passionate Friends”, de David Lean. A banda sonora, da autoria de Jonny Greenwood, acaba por ser determinante a esse respeito, já que imprime tensão nos momentos decisivos. Sendo “Linha Fantasma” um filme que se move nos meandros do mundo da moda, só há uma palavra a dizer em sinal de admiração: chapeau!
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