Senhor Wheatley, diga-nos, o que o separa das outras vozes do muitas vezes pouco inspirado cinema britânico, e lhe coloca na fila da frente das exportações para a Costa Oeste dos Estados Unidos do Sião? Acrescente-se: haverá em cima da mesa um projecto com os estúdios Marvel (Deadpool 3?) a ser concretizado nos próximos cinco anos? Talvez um spin-off de Star Wars, negócio esse em vias de concretização com a Disney? Permita-me que continue a ser enviesado, completamente injusto até. Diga-nos, senhor Wheatley, está nesta coisa de fazer filmes pelo chorudo cheque e desvios de IRS para as Caimão, ou quer continuar o seu registo, um nicho singular de comédia de hemácias, por norma concluída com um digestivo tão arrepiante que perturba qualquer estômago sensível? Too many questions.
Fã anunciado de Wheatley pelo menos desde que a sua citação de admiração foi eternizada no trailer da soberba odisseia alucinogénica medieval (ufa!), “A Field in England”, Martin Scorcese tem dedo metido em “Free Fire”, que como “High-Rise” (baseado na obra literária de J.G. Ballard, encorpada em Portugal numa edição Elsinore, figurante entre as escolhas de fim de ano do Deus Me Livro) conta já com nomes de calibre a assegurar representações memoráveis, de Cillian Murphy a Brie Larsen ou Sean Riley. Pode pensar-se que é o declínio previsível de um talento que se tem reafirmado desde o apelidado híbrido irmãos Cohen/Ken Loach, outra soberba odisseia chamada “Down Terrace”. Desde esse marco, Wheatley explorou terrenos semelhantes, numa vertente very british da Hammer em “Kill List”, ou na sua mais hilariante obra, quiçá a que ficará para a posterioridade na memória colectiva: os violentos laços tragicómicos entre sexos opostos de “Sightseers”.
Posto isto, ainda não é em 2017 que ir ao cinema ver “um Wheatley” (mantenho, desde o monólogo prévio a este texto, que jamais alguém disse semelhante coisa) é cena de foleiros – e quem pensou isso de Paul Verhoeven até vos ter rebentado os cornos com “Elle” e ser Herói Independente da edição passada do IndieLisboa, bem se redimiu das barbaridades proferidas quando percebeu que “Robocop” e “Total Recall” são obras-primas. Não vos custa admitir, por mais justas que sejam as vossas calças.
Admito, que desta geração de cineastas britânicos que nos últimos dez anos se manifesta com longas-metragens, você, senhor Wheatley, é dos melhores compositores de cena, engenhoso, e os seus directores de fotografia são donos de um digital limpo, quase antiséptico. Diria também que dirige os seus actores e não-actores com a sensibilidade de um Mike Leigh – e que elogio este, é dos meus cineastas predilectos. Não é para aí que caminha, senhor Wheatley, para uma tirada em Hollywood à Verhoeven (estética à parte)? Compromete-se com o establishment um bocadinho, cede aqui e ali aos sionistas e depois ZÁS, temos o rating mais adulto possível e a Westboro Baptist Church aparece-lhe à porta de casa com grunhos e clipes das cenas de sexo dos seus filmes figuram em propaganda anti-americana do DAESH. É difícil que consiga a última palavra daqui em diante, senhor Wheatley, mas há um grande mercado negro para versões do realizador.
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“Free Fire” figura na programação do IndieLisboa 2017, e pode ser visto hoje no Cinema São Jorge (21:45, Sala Manoel de Oliveira).
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