O Deus Me Livro assume: o título deste artigo é a forma mais vil de clickbait que povoa a interweb. No entanto, continuem a ler que valerá a pena (para bem ou mal dos nossos pecados, há clickbaits assim e este é um deles). O júri de sofá decidiu que as seguintes obras, sem ordem de relevância e em total consonância ex-aequo, são apostas ganhas do IndieLisboa 2017.
“Grave” (Julia Ducournau, 2016)
Ah, canibalismo, dieta mediterrânica para quê? A equipa por trás de “Grave” (ou “Raw”), liderada por Julia Ducournau, devia adivinhar, após concluída a edição, que tinha entre mãos um lucrativo negócio à vista com algum titã de Hollywood ou, quiçá, rancheiro texano que papa qualquer pitch que envolva mamas ao léu e/ou cenas de menino com menina. A promessa de “Grave”, essa, é cumprida sem poupanças: um festim de sangue que tem servido de porta de saída antecipada a alguns dos elementos mais sensíveis entre os espectadores. Escolham a última fila para duplo entretenimento e evitem, antes da sessão, encher o bucho na hamburgueria (menos) gourmet (que a tua cozinha) mais próxima.
“Revolution of Sound: Tangerine Dream” (Margarete Kreuzer, 2017)
Situem-se na infância da música sintetizada, deliciados com frequências puras, tão limpas, que das suas ondas projectadas em ecrãs rudes a duas cores, se formam linhas onduladas perfeitas que vos lembram os primeiros seios de uma mulher que viram na televisão. Testemunhe-se, em “Revolution of Sound”, o cosmos dos grandes, grandes Tangerine Dream – de longe o projecto musical mais relevante para a história da música contemporânea que graceja esta edição do IndieLisboa (perdoem-nos os Oasis, também curtimos muito a Champagne Supernova mas não chegam à nata porque existem os Beatles). O documentário em questão é assinado por Margarete Kreuzer, já familiarizada com imagens de arquivo do grupo, pois fora responsável em 2016 por “Tangerine Dream: Sound from another world”. Ora, é uma questão de sacar uma compilação “early years” ou, para os modernos do stream, visualizar (que hoje em dia jura-se ser sinónimo de ouvir) um “full album” no Youtube, e em seguida aproveitem uma pitada de kraut/kosmischen das sugestões laterais, de modo a chegarem à conclusão que os melhores são mesmo os Popol Vuh, mas que isto dos tangerinas também é muito fixe e não tem nada a ver.
“Vénus” (Lea Glob e Mette Carla Albrechtsen, 2016)
A honestidade do cinema de Lea Glob surpreende. “Olmo e a Gaivota” foi, sem sombra de dúvida, um dos mais belos momentos que presenciamos na edição 2016 do Indie. Daí que, ao filmar (com Mette Carla Albrechtsen) uma série de mulheres em ambiente intimista, falando sobre a sua sexualidade e o que daí advém (que tanta gente tem mais dificuldade em apreender do que em se orientar num diagrama da rede do metro de Tóquio), as cineastas procuram compreender aquilo que lhes tem frustrado a intimidade. “Vénus” não podia deixar de figurar nesta humilde (mas emancipada e segura dos direitos adquiridos com muita reivindicação) selecção oficial Deus Me Livro.
“Somniloquies” (Lucien Castaing-Taylior e Verena Paravel, 2017)
Vencedores do IndieLisboa 2014, Lucien Castaing-Taylior e Verena Paravel trouxeram-nos então esse marco do documentário moderno, imagine-se todo ele filmado com modestas GoPro – “Leviathan”. Apelidados de cineastas antropólogos, o tema de “Somniloquies” não é menos fascinante, uma premissa igualmente simples, porém mais distinta que a da obra predecessora. Enumeramos: a topografia do corpo adormecido; a luz natural que penetra a escuridão feita de focagens e desfocagens explícitas e calculadas; um feito de luxo no que à edição de som diz respeito. Um filme sonâmbulo propenso ao bocejo, no bom sentido. A ver quem eleva a arte vanguardista de dormir numa sala de cinema, outra que não a M. Félix Ribeiro da Cinemateca Portuguesa.
“Pamilya Ordinaryo” (Eduardo Roy Jr., 2016)
O choque de um indivíduo ocidental perante o cru/mal passado do quotidiano de Manila, fá-lo-á desejar com ainda mais apego a cadeira do cinema climatizado, onde se encontra com gente bonita em seu redor, esclarecida e em vias de obter aquela bolsa de doutoramento FCT. “Pamilya Ordinaryo” aproxima-nos de Jane e Aries Ordinaryo, adolescentes que se deparam com o rapto do seu recém-nascido, Arjan. Um autêntico pesadelo filipino sem ASAE, com as vísceras de Manila expostas na montra do “cinema do mundo”, sem refrigeração – do mais caótico trânsito ao beco mais imundo.
“Ciao Ciao” (Song Chuan, 2017)
Lembram-se quando os vossos pais diziam que, se cavassem um buraco no quintal, e fossem persistentes o suficiente para cavar até à exaustão típica de trabalho forçado, chegariam à China, do outro lado do planeta? Pois, nós também não. Mas, partindo de opostos (neste caso, as teimosas raízes culturais chinesas e a geração smartphone globalizada), traz-nos o IndieLisboa dos antípodas “Ciao Ciao”, de Song Chuan. Rumado a bom porto pelo leme do cineasta chinês, ainda de currículo modesto, estamos perante um cinema musculado pela sensibilidade essencial à sobrevivência dos mais incautos. Serve sobretudo para provar-nos que os ritmos humanos partem do mesmo compasso universal, pautados por um ostinato de dúvida e incompreensão.
“Ghost Hunting” (Raed Andoni, 2017)
Na senda da petição “Queremos a Palestina na Eurovisão” (e isto, depois de um rápido fact check ou até ver, é do âmbito da pós-verdade) foi aclamado, em Berlim, “Ghost Hunting”, de Raed Andoni, que acabaria por vencer Melhor Documentário no festival europeu número dois (e o primeiro não é a Eurovisão), sem surpresas, dada a admiração anunciada de Ken Loach pelo filme. Andoni é um cineasta que, digamos, sabe como deixar sionistas possessos de raiva. A subjugação de cárceres palestinianos (a acção desenrola-se numa prisão em Israel) perante a amostra coerciva do Estado vizinho, parece ainda uma espinha atravessada na garganta muito funda do Ocidente.
“Colo” (Teresa Villaverde, 2017)
Existem actualmente, em Portugal, três profissionais de cinema que filmam a adolescência como mais ninguém filma no mundo – com toda a lógica, dado o contexto sócio-cultural português ser irrepetível e inigualável, de uma perspectiva de longa duração histórica -, isto sem qualquer espécie de fanfarra de grunho nacionalista. Tal permite uma manifestação de cinema que tanto é interventivo através do seu realismo, como é ao mesmo tempo onírico e desligado de qualquer agora ou verdade. Aliás, o cinema nunca deveu coisa alguma ao dito “compromisso com a realidade”, sendo tal coisa apenas apregoada por alguns alunos de cinema que faltam às aulas. Posto isto, temos dois senhores que não são para aqui chamados – João Salaviza e João Nicolau – e uma senhora que já fez muito com muito pouco (afinal de contas isto é, com muito orgulho, Portugal), vezes várias – Teresa Villaverde. É dela este “Colo”, seleccionado por nós com o dedo indicador mais seguro de si, espetadíssimo.
“Free Fire” (Ben Wheatley, 2016)
O prémio IndieLisboa para melhor filme chico-esperto em que aquele teu amigo (que por alguma razão não vês regularmente desde os tempos do liceu) diz que é bué Tarantino, vai para “Free Fire”, de Ben Wheatley. Nada mais a acrescentar.
“Museum Hours” (Jem Cohen, 2012)
Por fim, o melhor filme que não viste em 2012 regressa, cerca de cinco anos depois, em modo tributo à carreira. Falamos de Jem Cohen, o Herói Independente IndieLisboa 2017 que mais nos interessa, e o seu “Museum Hours”, onde seguimos o – à primeira impressão – estranho Johann, funcionário do Museu Kunsthistorisches em Viena, e Anne, turista canadiana. Cohen, disciplinado nos silêncios provocadores do cinema, dá-nos um masterclass sobre o olhar atento ao detalhe, treinado através da arte dos cânones, com poucas, ou vá, as palavras essenciais.
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A programação do IndieLisboa 2017 invade, de 3 a 14 de Maio, diversos espaços da capital. São eles: Cinema São Jorge, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Culturgest, Cineteatro Capitólio e Cinema Ideal. Quanto às festarolas: Casa Independente, Musicbox e Garagem Culturgest.
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