Com realização de Cathy Verney, “Vernon Subutex” (estreia hoje, 5 de Março, na Filmin Portugal) é uma série francesa de nove episódios que adapta, ao pequeno ecrã e com um olhar muito próprio, a trilogia literária assinada pela francesa Virginie Despentes – os dois primeiros volumes estão publicados em portugal com o selo da Elsinore.
No centro de tudo está Vernon Subutex (Romain Duris), um tipo de 47 anos que ainda mantém um considerável jogo de cintura – apesar dos dentes miseráveis – e que, em tempos, foi empregado, mestre-de-cerimónias e a alma da Revolver, uma loja de discos em redor da qual tudo, mesmo tudo, girava – e onde se forjaram amizades e relações que pareciam estar destinadas a durar para sempre.
Expulso do apartamento por dever mais de um ano de renda, Vernon procura junto de Alex Bleach (Athaya Mokonzi), um músico que prepara o seu regresso após mais uma de muitas recaídas – e que vê em Vernon o seu guru e grande amigo -, um tecto para pernoitar, adaptando o lema dos NA de que o melhor mesmo é ir pensando dia a dia. A verdade é que, nessa mesma noite, depois de aspirarem e varrerem as narinas como esmerados empregados de limpeza, Alex morre de overdose, deixando a Vernon Subutex três cassetes onde se encontra, não apenas a sua música futurista carregada de ondas alfa, como também uma espécie de testamento, que poderá conter informações que deixarão Laurent Dopalet (Laurent Lucas), um bem-posto produtor de cinema, em maus lençóis. À medida que vai saltando de sofá em sofá, perdendo-se nas ruelas da cidade como um anónimo solitário, Vernon tornar-se-à no homem mais procurado da cidade de Paris.
Mas quem é, então, Vernon Subutex, este misto de charme e desencanto, que parece trazer a má sorte a quem o acolhe e que acompanhamos numa descida em lume brando até às profundezas de uma sarjeta? Alguém que desistiu da vida, incapaz de aceitar as muitas e estranhas mudanças que se deram no mundo? Que recusou a tramada vida adulta, feita de cedências, ultrajes, fraldas, impostos, neuroses e idas ao psicólogo? Ou será a cola que nos mantém ligados ao que é fundamental, ao que fomos em tempos e que, a certa altura da linha temporal, descartámos em nome de algo que, muitas vezes, nos ultrapassa? Vernon Subutex é tudo isto e muito mais: é o eco silencioso de todas as nossas falhas e anseios; a memória de um passado adormecido e dos sonhos recalcados; a consciência colectiva que tem nele o seu centro, unida através da sua presença discreta e da música que serve e que é, ontem e sempre, o fio condutor capaz de a todos unir.
A série vê-se de um só fôlego, uma sátira com alma punk e de tons burlescos que olha, desalentada, para a sociedade moderna, sem nunca esquecer o humor e, sobretudo, a compaixão. Vernon é alguém que perdeu sem arrependimento o comboio da revolução digital – ou que, no limite, ficou preso no vagão onde é guardado o carvão -, e que, aos poucos, vai deixando para trás os seus pertences, como que nos fazendo lembrar que, num tempo não assim tão distante, já foi bem mais importante “ser” do que “ter”.
Para além de Vernon, a série é habitada por um grupo de personagens memoráveis: La Hyène (Céline Sallette), uma mulher que ganha a vida a dar cabo de reputações alheias na auto-estrada virtual – e, quando é preciso, de caras e ossos no mundo a sério; Lydia Bazooka (Calypso Valois), uma jornalista principiante que sonha com escrever a biografia de Alex Bleach; Xavier Fardin (Philippe Rebbot), amigo de infância de Vernon, um argumentista frustrado e que está metido num casamento onde tem de andar em pezinhos de lã; Pamela Kant (Juana Acosta), uma ex-estrela porno que tem, nas redes sociais, uma legião de seguidores e arautos; ou Sylvie (Florence Thomassin), em tempos a maior brasa do pedaço e agora uma psicótica dos sete costados. Personagens que, com Vernon, nos fazem olhar com atenção para a misoginia, a pornografia, a religião, a raça, o neo-fascismo, as questões de género e, sobretudo, para a forma como o capitalismo exacerbado vai tratando de destruir aquilo que há de mais essencial na aventura de ser humano.
Tal como nos livros de Virginie Despentes, a música ocupa um lugar primordial na série televisiva, numa ode à efervescência do indie-rock e à fisicalidade da música onde cabem Ramones, Karen Dalton, Sonic Youth, Daniel Darc ou os Sleaford Mods. No coração desta banda sonora esteve o senhor Matthieu Sibony, mais conhecido nas paisagens cinematográficas francesas, que conseguiu, tal como Vernon faz com aqueles que o cercam, encontrar canções que casam com o protagonista, seja com o seu lado mais gingão ou destrambelhado, a sua aura melancólica ou uma tremenda generosidade. Um trabalho que partiu, também, de um trabalho de casa feito na leitura de blogues que, a partir da leitura da trilogia de Despentes, se dedicaram a fabricar com esmero algumas playlists, e que conheceu uma edição física com o selo da Parlophone que conta com 35 temas e mais de 130 minutos de música de eleição.
Uma viagem onde nos cruzamos com a nação zombie de Athaya Mokonzi, sorvemos uma colher de mel caseiro produzido pelos Spaceman 3 e Jesus & Mary Chain, bebemos um copo na boa companhia de Janis Joplin e Bobby McGee, atingimos o pico da felicidade com os Les Thugs, marcamos uma consulta de urgência com os Mudhoney, escapamos ao Apocalypse por uma unha negra, saltamos um anel de fogo, assistimos à rebelião da malta mais nova, somos diagnosticados com Schizophrenia pelos doutores Sonic Youth, curamos os Munchies com Kid Loco, celebramos esta Wonderful Life com Smith & Burrows, compomos uma Elegia a meias com os New Order, passamos em casa de Abdul e Cleopatra para um olá rápido, perdemos o medo de cometer novos erros com o mestre Moderat e, quando for hora disso, vamos recitando de olhos fechados no centro da Discoteca: “Somos os vencidos, e somos uma legião. Estamos à procura de um caminho”. Bravo.
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