Cinismo, umbigos grandes, egocentrismo, espelhos que parecem muitas – demasiadas – vezes pequenos, arrogância, vaidade e olhares que, invariavelmente, chegam do alto. Alguns dos ingredientes que, em dias passados e vindouros, vão servindo para cozinhar uma série de grandes e pequenos escritores, mal habituados a caminhar nos corredores da cultura com o porte e a altivez da realeza. Em “O Ilustre Cidadão”, a dupla Mariano Cohn e Gastón Duprat serve uma comédia feroz e trepidante sobre o ego literário mas, mais do que isso, uma revelação em crescendo sobre o lado mais miserável da condição humana.
Quando Daniel Mantovani (Oscar Martínez) lhe vê ser entregue o Prémio Nobel da Literatura, assume durante um discurso de vitória pouco comum que a sua carreira literária chegou ao fim. A viver na Europa há quase quatro décadas, o escritor argentino acaba por voltar atrás numa decisão de vida e aceita um convite oficial para visitar Salas, a pequena povoação argentina que o viu nascer e que serviu de cenário a todos os seus romances. E, se nos primeiros dias é visto como um ilustre cidadão, aos poucos vai tee de de confrontar as personagens dos seus romances, que parecem querer atirá-lo para um lugar feito de areias movediças de onde parece ser difícil sair.
Nas entrelinhas há, também, uma denúncia ao aproveitamento da arte e à sua institucionalização, num argumento que mistura, de forma exímia, a comédia com o convite à reflexão, numa narrativa em crescendo onde as reviravoltas são muitas e inesperadas e onde, com uma deliciosa acidez, alguma ingenuidade e um gosto requintado pelo absurdo, se mergulha no lado mais teatral e egocentrista da literatura, na forma parasitária – e fascinante – como a ficção se alimenta da vida e a transforma em algo de sublime e intemporal.
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