Denzel Washington, em entrevista recente, afirmou ter há muito vontade de passar o texto de August Wilson para o cinema. Escrito em 1983, “Vedações” (“Fences” no original) conquistou o Prémio Pulitzer, tendo sido adaptado para a Broadway quatro anos mais tarde. No entanto, a acção decorre em meados de 1950, em pleno período de segregação racial, e centra-se numa família negra de classe média-baixa. Para além de realizador, Washington assume o papel de protagonista, Troy Maxson, um pai de família com um orgulho do tamanho da cidade onde vive: Pittsburgh. Logo no início, vemo-lo em acção enquanto “homem do lixo”; apesar de não temer a dureza de um trabalho socialmente pouco reconhecido, acaba por enfrentar o superior hierárquico contestando o facto de não haver motoristas negros – um acto de ousadia que lhe valerá uma promoção.
Neste primeiro contacto, Troy parece ter as ideias no lugar; trata-se de um patriarca que assume as suas responsabilidades sem nunca hesitar um milímetro, pese embora viva em contagem decrescente com uma só ideia na cabeça: a chegada do fim-de-semana. E eis que chega mais uma sexta-feira, dia em que pode finalmente beber uns tragos na companhia do colega e amigo Bono (Stephen McKinley Henderson). A eles junta-se Rose (Viola Davis), a mulher com quem Troy é casado há dezoito anos, sendo a cumplicidade entre ambos evidente. A acção passa-se quase única e exclusivamente nas traseiras da casa de tijolo onde várias conversas são mantidas durante horas a fio, acentuando o carácter histriónico da obra. Os diálogos sucedem-se com uma cadência acelerada, quase musical; cada um dos actores imprime um ritmo e um vigor a um texto muitas vezes poético, nunca comprometendo a naturalidade. À medida que a densidade das personagens se aprofunda, Washington e Davis oferecem-nos uma masterclass com uma ferocidade trepidante.
Em tempos jogador profissional de baseball, Troy nunca alcançou a fama ou o dinheiro que lhe permitisse levar uma vida confortável, algo que o marcou para sempre. A culpa, na sua opinião, assenta na discriminação racial com que sempre se debateu, motivo pelo qual pretende impedir que o filho mais novo, Cory (Jovan Adepo), alimente quaisquer ilusões de grandeza nesta área. Está plenamente convencido que a sociedade nunca dará a menor oportunidade aos negros, algo que serve como desculpa para justificar o desfecho estéril da sua carreira desportiva. As coisas, porém, não são assim tão simples: na verdade, Troy esteve preso por homicídio durante quinze anos, hipotecando qualquer hipótese de sucesso. Pelo meio, deixou um filho, Lyons (Russell Hornsby), que teve de crescer sem uma figura parental por perto.
É a este filho que Troy – anos mais tarde – recusa emprestar dez dólares, alegando tratar-se de um inútil que se recusa a assumir as responsabilidades de um adulto, já que prefere passar as noites a tocar num clube nocturno em vez de ganhar a vida através de uma profissão convencional. À medida que as diferentes personagens entram em cena, a verdadeira natureza de Troy é revelada de forma gradual, ou, recorrendo a uma expressão que lhe é cara, os “demónios” são expostos um a um até ao derradeiro momento. Um dos grandes “demónios” é o irmão Gabe (Mykelti Williamson), que regressou da Segunda Guerra Mundial sem juízo e com uma chapa de metal na cabeça. Graças a este infortúnio, descobrimos que Troy pôde comprar a casa onde vive, já que os três mil dólares de indemnização por invalidez permitiram a aquisição de uma pequena propriedade.
“Vedações” é um filme sobre oportunidades perdidas, sentimentos de culpa, dificuldades de relacionamento entre pais e filhos. É um filme sobre as diferentes formas como podemos reagir ao fracasso e às limitações que a sociedade nos impõe, razão que nos leva a construir “vedações” que nos protejam dos outros. Mas é também um filme sobre a resiliência e a capacidade de amar nas condições mais adversas. Um hino ao poder da palavra escrita.
Sem Comentários