“Apesar de absolutamente nipónicos estes filmes são, ao mesmo tempo, universais. Neles pude reconhecer todas as famílias de todo mundo, e também os meus pais, o meu irmão e eu. O cinema, para mim, nunca esteve antes, e jamais desde então, tão próximo do seu propósito: dar uma imagem do homem do século XX, uma imagem útil, verdadeira e válida, em que ele não só se reconheça, mas com a qual possa sobretudo aprender sobre si próprio.“
Estas palavras são do realizador Wim Wenders e enquadram o ciclo “Ozu Revisitado”, um programa que a Medeia Filmes dedica a Yasujiro Ozu, entre 30 de Junho e 6 de Julho no Cinema Nimas, que arranca com o belíssimo “Primavera Tardia” (1949), um ponto de viragem no período final da obra de Ozu.
Escrito em conjunto com Kogo Noda, é a partir deste filme que o estilo visual do realizador se depura ao máximo, numa extrema simplificação. Poucos movimentos de câmara, enquadramentos geométricos, cortes cirúrgicos e a célebre posição da câmara ao nível do chão – como se estivéssemos sentados de joelhos num tatami – permitem que as personagens de Ozu vivam.
Nos seus primeiros filmes, embora existissem alguns travellings, raramente existiam panorâmicas. Porém, sem este rigor dos planos parados de Ozu a humanidade das personagens não se revelaria de forma tão completa. Os seus planos não são meros formalismos e as suas implicações nunca foram apenas estéticas.
Considerado pelos Japoneses o mais japonês de todos os realizadores, Ozu é acima de tudo um cineasta de emoções, afectos e gestos, aquele que está mais próximo da vida quotidiana, e que paralelamente reflecte a complexidade da sociedade japonesa.
Como muitos dos seus filmes, “Primavera Tardia” é um filme sobre as gigantescas diferenças socio-culturais sentidas no Japão do pós-guerra.
Este primeiro filme do ciclo dá o mote para uma viagem maravilhosa pelo universo idiossincrático do mestre, e é um exemplo perfeito de como as suas personagens transmitem, quase sempre, o contexto da sociedade, neste caso a sociedade feminina japonesa após a Segunda Guerra.
Considerado um dos mais perfeitos, mais completos e mais bem sucedidos estudos de personagem alguma vez produzidos pelo cinema japonês, “A Primavera Tardia” é um dos filmes preferidos de Ozu, ao lado de “Havia um Pai”(1942) e “Viagem a Tóquio” (1953), numa carreira com mais de cinquenta longas-metragens.
“Viagem a Tóquio” é o filme do realizador que maior reconhecimento internacional tem e o mais citado. É uma síntese do seu cinema e de temas como a passagem do tempo, o conflito geracional e, sempre no centro de tudo, a família.
Através de uma mise en scène irrepreensível, Ozu hiptoniza-nos com as suas imagens e diálogos, e mergulhamos nos desejos e nos dias finais de um casal de idosos. O casal vive em Onomichi, no sul do Japão, e viaja até Tóquio para visitar os seus dois filhos casados. A partir de uma simples narrativa, desenvolve-se um dos mais extraordinários filmes japoneses de todos os tempos, num estilo completamente refinado, contido e honesto. Um filme perfeito, um estudo tocante da natureza humana e da impossibilidade de acordo entre gerações.
Com “A Flor do Equinócio” (1958) fez a transição para a película colorida como se sempre tivesse filmado dessa maneira. Esta mudança no final da carreira de Yasujiro Ozu, da fotografia a preto e branco para a fotografia a cores, reflectiu uma cedência perante os produtores do estúdio Shochiku, e não foi propriamente uma escolha estética por parte do realizador. De novo, juntou-se a Kogo Noda, amigo, companheiro de copos e co-argumentista da maior parte dos seus filmes, para adaptarem um romance de Ton Satomi sobre o casamento arranjado, tradição profundamente enraizada no Japão que ainda se reflecte nos dias de hoje.
Esse é o ponto de partida para um retrato de uma geração de jovens do pós-guerra, que olham optimistas para o futuro, e que tentam quebrar com as regras impostas por uma estrutura social rígida e patriarcal. Aqui, a ocidentalização do país torna-se evidente com as transformações de Tóquio, que cresce na vertical e que contrasta com o equilíbrio horizontal das casas tradicionais. Porém, o mundo nos filmes do mestre Ozu é um mundo em fluxo, onde não há absolutos, nem personagens boas ou personagens más, numa posição de observação.
“Bom Dia”(1959) é possivelmente um dos seus filmes mais cómicos, uma nova versão de um dos seus filmes anteriores, “Eu Nasci, mas…”(1932), situando agora a história após a Segunda Guerra Mundial.
Descontentes com a decisão dos pais, que recusam comprar uma televisão, dois irmãos resolvem fazer, como forma de protesto, uma greve de silêncio. Um retrato de família com muito sentido de humor mas tão rico quanto os seus filmes mais dramáticos. Ozu brinca com as fraquezas do mundo adulto através dos olhos dos seus protagonistas infantis, enquanto retrata com humor o quotidiano suburbano de um Japão que se americaniza. Uma sátira cheia de calor e coração, e muitas piadas sobre flatulência.
Com “O Fim do Outono” (1960), Ozu revisita a ideia principal da obra-prima “Primavera Tardia”, e escreve o que é, no papel, essencialmente um enredo de uma comédia romântica. Reunidos para lembrar Shuzo, que faleceu há sete anos, três dos seus amigos decidem que está na hora de encontrar um bom marido para a filha que Shuzo deixou: a bela Ayako. Desta vez, a crítica subjacente ao conservadorismo da sociedade japonesa é representada pelo antagonismo entre casamentos arranjados e românticos, o tema central no filme.
“Primavera Tardia” é semelhante a “O Fim do Outono”, que por sua vez é semelhante a “O Gosto do Saké” (1962), e as histórias secundárias de um transformam-se nas histórias principais de outro.
Último filme de Ozu antes de morrer, “O Gosto do Saké” trata mais uma vez da oposição entre tradição e modernidade, e também nesta história existe a personagem de uma filha que precisa de ser casada. Neste caso, o seu pai viúvo vê-se na obrigação de escolher o melhor marido possível, mesmo que essa escolha o aproxime cada vez mais da solidão. À semelhança dos seus últimos filmes, “O Gosto do Saké” é filmado em Agfacolor, uma película produzida na Alemanha, e que Ozu preferiu a outros processos como Technicolor, Kodak ou Eastmancolor, devido à forma como processava o vermelho, uma das suas cores preferidas. O “Gosto do Saké” é a despedida do mundo do cinema de Yasujiro Ozu, e um dos filmes mais bonitos de sempre para se ver num grande ecrã.
No contexto do ciclo “Ozu Revisitado”, o Cinema Nimas exibe ainda “Tokyo-Ga” (1985), um “diário de viagem filmado” de Wim Wenders, uma visita ao “santuário do cinema” que é a obra de Ozu, aos seus locais e às pessoas que com ele trabalharam. Realizado antes de “Paris, Texas”, Wim Wenders viajou com o director de fotografia Ed Lachmann até Tóquio, para encontrar a cidade representada na obra do mestre nipónico, que nos é tão próxima.
Ozu Revisitado – Programação
30 Junho | 15h00: Primavera Tardia
1 Julho | 15h00: A Flor do Equinócio
2 Julho | 19h00: Viagem a Tóquio
3 Julho | 13h30: O Gosto do Saké
4 Julho | 19h30: Bom Dia
5 Julho | 17h00: O Fim do Outono
6 Julho | 15h00: Tokyo-Ga
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