Apesar de ser um símbolo maior da cultura britânica, Jane Austen tem seduzido diversos cineastas norte-americanos – como é o caso de Whit Stillman, que não resistiu a adaptar “Lady Susan” para o grande ecrã. Segundo os especialistas, trata-se de uma obra escrita no início da carreira de Austen – que teria apenas 19 ou 20 anos quando a passou para o papel -, pese embora tenha sido publicada postumamente. E, ao contrário de personagens mais benignas – como Lizzie Bennett ou Emma Woodhouse -, Lady Susan Vernon (Kate Beckinsale) não olha a meios para atingir os fins. Ardilosa e sofisticada, a bela viúva é descrita pela própria cunhada, Mrs Catherine Vernon (Emma Greenwell), como “a serpente do Paraíso”.
Depauperada e com uma filha – Frederica (Morfydd Clark) – a seu cargo, Lady Susan chega a Churchill com um único objectivo em mente: garantir um futuro com estabilidade financeira. Para tal, o “alvo a abater” será Reginald De Courcy (o australiano Xavier Samuel, que já pudemos ver na saga “Twilight”), irmão mais novo de Lady Catherine, com quem pretende dar o nó. Depois de tentar a sorte com Lord Manwaring, a primeira personagem a ser apresentada como “um homem divinamente atraente”, eis que a protagonista decide “deixá-lo cair”, uma vez que pesa sobre ele um terrível inconveniente: Lord Manwaring é casado. Logo, a disponibilidade e a inocência de De Courcy vão ao encontro dos seus desígnios. E é aqui que “Amor e Amizade” (“Love & Friendship” no original) se converte numa master class de manipulação: sempre que há suspeitas em torno do carácter de Lady Susan, rapidamente são dissipadas; sempre que surgem rumores indiscretos sobre o seu passado, depressa se desvanecem. Lady Susan manipula toda a gente em seu redor com a habilidade de um político experiente sem nunca perder a compostura. Para tal contribui o facto de nunca abandonar o luto, exibindo um aspecto de viúva respeitável.
Mesmo no momento em que Frederica se apresenta como uma ameaça aos seus planos, Lady Susan não desarma: em modo de retaliação, convida Sir James Martin (Tom Bennett) a visitá-las em Churchill, prometendo-lhe a mão da filha. O problema é que esta foge de Sir James como o diabo da cruz, já que se trata do tolo da companhia. “Mas o casamento é para toda a vida!”, protesta Frederica. Ao que a mãe habilmente responde: “Não foi o meu caso.” E, embora haja inúmeras situações caricatas em torno deste convidado – desde crer que existem Doze Mandamentos a procurar uma igreja (church) e uma colina (hill) em Churchill -, a viúva insiste: “Ele é bastante tonto, mas não deixa de ter um certo charme.”
Tudo isto acontece sob o olhar atento da norte-americana Mrs Alicia Johnson (Chloe Sevigny), a sua única amiga e confidente. Apesar de ser a aliada perfeita, pois estamos perante uma mulher sem escrúpulos, Mrs Johnson tem, segundo Lady Susan, um grave defeito: é casada com um homem “demasiado velho para obedecer e demasiado novo para morrer.” (Stephen Fry é o marido em questão, num papel um tudo-nada incipiente para se fazer notar.) Embora Stillman tenha retirado esta frase da novela de Austen, não deixou de introduzir a sua própria marca – como na cena em que o pai de De Courcy (James Fleet) lê uma carta em voz alta, insistindo em referir toda a pontuação.
Este é, aliás, o principal motivo por que este filme se tornou um projecto tão bem-sucedido: os diálogos, muitas vezes assumindo o ritmo de uma screwball comedy, estão repletos de humor e nunca há a tentação de redimir Lady Susan, que guarda a sua jogada mais brilhante para o fim. Kate Beckinsale, que já tinha desempenhado o papel de Emma Woodhouse sob a direcção de Whit Stillman, é absolutamente primorosa. Nunca a perfídia teve tanta graça. Nunca uma comédia de costumes foi tão encantadora. Será difícil ultrapassar a fasquia.
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