“Já não sou aquela rapariga de outros tempos” é a frase que ecoa ao longo de “A Rapariga no Comboio” (“The Girl on the Train” no original), o thriller baseado no bestseller da britânica Paula Hawkins. O mesmo poderia dizer a autora, que confessou ser este romance a última tentativa para se estabelecer como escritora e pagar uma série de dívidas há muito pendentes. O sucesso comercial foi de tal modo estrondoso que até Barack Obama admitiu ter gostado particularmente da obra.
Aquela que já não é a “rapariga de outros tempos” chama-se Rachel Watson (Emily Blunt), um peixe fora de água na imensidão do estado de Nova Iorque, perdida no isolamento a que se forçou. Assim que tomamos contacto com a personagem, apercebemo-nos tratar-se de alguém diminuído, já que a expressão de desalento é empolada pelo constante consumo de vodka, ainda que disfarçado através de uma garrafa de água design. Rachel desenha num bloco enquanto viaja de comboio – uma viagem que se repete diariamente entre a Estação Grand Central em Manhattan e Ardsley-on-Hudson, uma pequena cidade situada nos subúrbios – e prefere alhear-se das pessoas em seu redor; nem mesmo o olhar interessado de um passageiro sentado em frente consegue desviá-la dos esboços. Há, porém, algo que subitamente lhe capta a atenção: Megan Hipwell (Haley Bennett), uma mulher atraente que se encontra na varanda de uma moradia, a poucos metros da linha de comboio. Uma mulher que parece ter tudo: uma aparência vistosa, um marido atencioso, uma casa sofisticada. Em contrapartida, Rachel é a mulher que tudo perdeu: a aparência cuidada deu lugar a um farrapo, o marido deixou-a por outra mulher – com quem agora vive na casa que já foi sua.
Rachel era casada com Tom (Justin Theroux) e pareciam destinados a ter a vida perfeita, já que a morada elegante denunciava carreiras bem-sucedidas. No entanto, o bem-estar acaba por ser minado por uma gravidez que teima em não acontecer, desencadeando o consumo desenfreado de álcool. Em flashback, assistimos a acessos de fúria, birras, perdas de memória, discussões violentas, que acabarão por empurrar Rachel para a situação actual: uma mulher divorciada completamente só, sem emprego, e que vive na casa de uma amiga por favor. À medida que a trama se adensa, descobrimos que, afinal, todos estão interligados: Megan trabalha como babysitter para Anna (Rebecca Ferguson), a mulher que “roubou” o marido de Rachel e a quem deu o filho que Rachel não pôde dar.
A auto-comiseração não podia ser mais aguda: em desespero, e sempre em estado de embriaguez, destila a raiva que sente pelo “ex-” borrando um espelho de uma casa-de-banho pública com bâton; entra à socapa na casa de onde foi expulsa para pegar no bebé que não foi capaz de ter; acorda numa poça de sangue sem conseguir lembrar-se do que aconteceu na noite anterior – a mesma noite em que Megan é dada como desaparecida. Poucas horas antes, Rachel não resiste a sair do comboio de forma precipitada mal se depara com um cenário imprevisto: a misteriosa Megan a beijar um estranho, destruindo a ideia de vida idílica criada na cabeça da “rapariga no comboio”. Para o bem e para o mal, é este desaparecimento que resultará num ponto de viragem no percurso da personagem principal.
O filme, realizado por Tate Taylor, converte-se numa narrativa inverosímil à medida que se aproxima do desfecho – ao ponto do clímax roçar o absurdo. Contudo, o talento de Emily Blunt acaba por salvar a viagem: a actriz veste tão magistralmente a pele de uma mulher descontrolada e obsessiva que impede o descarrilamento. Depois do seu desempenho notável em “Sicário”, Blunt faz-nos lembrar Jimmy Stewart no clássico “Janela Indiscreta”, uma comparação a que só os melhores têm direito. Quando o engenho é imenso, torna-se difícil não ceder ao (nosso próprio) voyeurismo.
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