No fascinante e riquíssimo universo do cinema japonês, Shinji Sōmai emerge como uma figura essencial, cuja obra, composta por treze longas-metragens, é uma verdadeira celebração de sensibilidade e criatividade. Embora pouco conhecido fora do Japão, deixou uma marca duradoura nos anos 80, tendo sido aclamado pela revista Kinema Junpo como o maior realizador da década. Na sua filmografia, encontramos filmes que se tornaram ícones da cultura japonesa, como “Sailor Suit and Machine Gun” (1981), que se transformou num fenómeno de bilheteira, e “Typhoon Club” (1985), que recebeu o Grande Prémio na primeira edição do Festival Internacional de Cinema de Tóquio.
Sōmai, mestre dos planos-sequência longos e hipnóticos, captou como poucos a inquietação e a vulnerabilidade da juventude, criando uma obra que dialoga com cineastas contemporâneos como Ryusuke Hamaguchi, Shunji Iwai e até Sean Baker, o mais recente vencedor da Palma de Ouro com “Anora”, que é um admirador declarado do cineasta. “Mudança” (Moving, 1993), a sua décima longa-metragem, foi exibida no dia 2 de Novembro no programa “Sessões para Famílias” do Batalha Centro de Cinema no Porto, e é um magnífico testemunho do seu talento.
Esta sessão, que terá servido como porta de entrada para muitos espectadores no universo de Shinji Sōmai, é também o pretexto para este humilde texto, que, apesar de destacar alguns dos seus principais filmes, não abrange a complexidade e as nuances do seu extraordinário cinema.
Com visuais exuberantes e planos meticulosamente elaborados, Sōmai, um poeta da alienação, da frustração e da revolta juvenil, capta em “Mudança” a essência do crescimento, que envolve deixar para trás os ideais da infância e aceitar a complexidade e a imperfeição dos pais.
Com a separação dos pais, Renko, de 10 anos, vê-se obrigada a lidar com a nova realidade em que o pai sai de casa, deixando-a sozinha com a mãe em Quioto. Enquanto a mãe tenta estabelecer novas regras para a vida a dois, Renko, cheia de energia e determinação, decide que as mudanças familiares devem ocorrer segundo os seus próprios termos. Forçada a amadurecer rapidamente, assume o papel de mediadora entre os pais, esforçando-se por preservar a família em colapso.
A cena de abertura, repleta de cores em contraste com o ambiente tenso, apresenta um último jantar familiar e revela a luta de Renko para manter a unidade familiar enquanto os pais enfrentam as suas próprias crises. É nesse momento, à frente da câmara, que encontramos pela primeira vez a jovem Tomoko Tabata, na sua estreia no cinema, oferecendo uma verdadeira tour de force que confere a Renko uma dimensão maior que a vida. Essa dimensão extraordinária “materializar-se-á” depois num dos desfechos mais belos e transcendentes na obra de Sōmai, um deslumbrante espectáculo de fogo de artifício durante um festival nas margens do Lago Biwa. Assim, chega o futuro de Renko.
Ao abordar temas de perda e adaptação, “Mudança” demonstra a habilidade do cineasta em converter experiências pessoais em narrativas universais. Um filme maravilhoso que convida à reflexão sobre o significado de crescer num mundo, tanto interior quanto exterior, em constante transformação.
Por sua vez, “Sailor Suit and Machine Gun”, a segunda longa-metragem de Sōmai e, talvez, a mais comercial, aborda a temática da ausência familiar sob a aparência de um filme adolescente de yakuzas. A história de Izumi, uma estudante que herda a liderança de um clã criminoso após a morte do pai, proporciona uma visão fascinante da transição da juventude para a vida adulta. Somai utiliza essa premissa inusitada para filmar com uma sensibilidade lúdica, as pressões e dilemas da adolescência, ao mesmo tempo que desafia as normas do género de forma inteligente.
Embora o tom seja mais de uma comédia dramática, a trajectória de Izumi, imersa num ambiente urbano repleto de incertezas e figuras masculinas ameaçadoras, culmina, como mandam as regras, num tiroteio intenso — talvez o único momento do filme em que realmente sentimos que estamos a assistir a um filme de yakuzas, tal como os de Kinji Fukasaku. No entanto, essa sequência explosiva é apenas a cereja no topo do bolo, o verdadeiro foco de Sōmai sempre foi a transformação emocional de Izumi, que reflecte as experiências de muitas jovens à procura do seu lugar num mundo dominado por padrões patriarcais. E, se não é o melhor filme de yakuzas, é, sem dúvida, um belo filme familiar.
Em filmes como “Sailor Suit and Machine Gun”, “Lost Chapter of Snow: Passion” (1985), “Mudança” e “Typhoon Club”, Sōmai expõe uma temática comum ao centrar-se em crianças e jovens adultos submersos em tempestades emocionais, aprisionados em crises e desilusões que à partida parecem não ter saída, mas que, por trás das dificuldades, revelam uma promessa de renovação.
Em “Typhoon Club”, um dos momentos mais triunfantes da sua carreira e uma verdadeira obra-prima, um grupo de jovens retidos na escola, enquanto um tufão se aproxima, confronta a crueza das suas vulnerabilidades individuais. O espaço escolar torna-se assim um microcosmo social, onde a ausência de figuras parentais transforma os corredores em labirintos de autodescoberta, um lugar que deveria ser um refúgio seguro, mas que se converte num ambiente onde a inocência e a violência coexistem.
Os adolescentes de “Typhoon Club” enfrentam as suas lutas internas num contexto sociocultural que só exacerba as suas ansiedades e incertezas em relação ao futuro. Na década de 1980, os jovens japoneses encontravam-se imersos numa sociedade em rápida transformação, impulsionada pelo crescimento económico que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Essa evolução elevou as expectativas em relação ao desempenho académico e profissional, gerando uma pressão intensa sobre as novas gerações, que, por sua vez, se viam marcadas por uma crescente alienação.
Neste contexto, os pais frequentemente não conseguiam ou não sabiam como satisfazer as necessidades emocionais dos filhos. Essa pressão é evidente desde os primeiros minutos do filme, num ambiente carregado de emoções prestes a explodir. Só a chuva intensa poderá proporcionar a libertação tão ansiada.
Mas Sōmai não se limitou apenas a filmar a adolescência e a infância. Em 1985, o realizador fez a sua única incursão na linha de produção “Roman Porno” dos estúdios Nikkatsu, ao realizar o sofisticado e melancólico pinku “Love Hotel”. Esta linha de filmes, lançada pelo estúdio durante a década de 1970 como resposta ao crescente número de televisores em casa e à consequente diminuição das idas ao cinema, oferecia uma rara liberdade criativa, servindo como um terreno de experimentação para jovens realizadores. Obras caracterizadas por um erotismo que se entrelaçava com reflexões sobre os tabus e as contradições da cultura japonesa, expondo muitas vezes as tensões e problemas sociais da época.
Estética e formalmente, os pinkus destacaram-se em relação a muitas produções eróticas do Ocidente, especialmente pela visão experimental e política de cineastas como Norifumi Suzuki, Noboru Tanaka e Yasuharu Hasebe. O modelo de produção, tanto na linha “Roman Porno” da Nikkatsu como na linha “Pinky Violence” da Toei, era marcada por uma flexibilidade que roçava a provocação, permitindo que os realizadores filmassem conforme desejassem, desde que incluíssem um par de cenas de sexo.
Esse cenário deu origem a um panorama cinematográfico rico, mas instável, onde pérolas inesperadas surgiam lado a lado com produções de qualidade questionável. Certos cineastas japoneses hoje reconhecidos, como Kiyoshi Kurosawa, transitavam antes sem reservas entre o pinku, o terror, a comédia e o drama, sem qualquer preconceito. No início da sua carreira, Kurosawa realizou os pinkus “Kandagawa Pervert Wars” e o muito godardiano e divertido “Bumpkin Soup”, ambos para a Director’s Company.
Embora tenha uma narrativa que reflecte as características obrigatórias do pinku, especialmente através do argumento de Takashi Ishii, que contribuiu para a provocadora série “Angel Guts” (“Angel Guts: Red Porno”, o filme mais estético da série, estreou em Portugal em 2020 pela Leopardo Filmes no âmbito de um ciclo), “Love Hotel” preserva todas as marcas distintivas de Sōmai e uma complexidade quase tão profunda quanto a que encontramos em “Mudança” e “Typhoon Club”.
À semelhança da escola, este “hotel do amor” não é um lugar seguro, é um palco onde as emoções reprimidas ganham uma intensidade quase tangível. No quarto, desejo e aflição abraçam-se, revelando uma tensão entre a busca de amor e o confronto com uma modernidade urbana decadente.
Os longos planos concentram-se em gestos e nos corpos, acentuando a sensação de isolamento e melancolia dos personagens. A cidade e o hotel vibram com uma vida própria, iluminados por néons, enquanto os rostos do casal protagonista procuram, naquele espaço confinado, um conforto que parece sempre escapar. É surpreendente encontrar tanta desolação num filme erótico — sentimentos que frequentemente não se observam nas produções americanas ou europeias. No entanto, esta é a “japanese way” de abordar um drama erótico, e “Love Hotel” foi a única incursão de Sōmai neste domínio.
Shinji Somai explorou outros personagens adultos em vários dramas notáveis, como “Luminous Woman”, “The Catch” e “Kaza-hana”, este último já no início do milénio, pouco antes de falecer. Embora estas obras tenham muito mérito e ofereçam uma perspectiva única sobre a vida adulta, é a sua abordagem à juventude que realmente o destaca como uma figura imprescindível nas narrativas de crescimento.
Sōmai capturou as complexidades e transições dessa fase da vida de uma forma que ressoa com todos, independentemente da cultura. E, se, após o belo final de “Mudança”, alguém não se sentir tocado ao deixar a sala de cinema, talvez seja prudente consultar um médico, pois um coração insensível aos filmes de Sōmai pode ser mais preocupante do que parece.
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