Inicialmente publicado em 1964, “Herzog” (Quetzal, 2014) é um dos mais acutilantes livros do canadiano Saul Bellow, considerado por muitos como um dos expoentes da literatura norte-americana do pós-guerra, cuja inspiração estava ancorada no universo existencialista europeu e, acima de tudo, na obra de Franz Kafka.
Galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1976, Bellow escreveu “Herzog” há cinquenta anos, numa época em que o autor de livros como “As Aventuras de Augie March” ou “Morrem Mais de Mágoa” ainda não tinha sido atingido por uma personalidade perfilada por elevadas doses de um avarento conservadorismo que o levou a atacar constantemente o multiculturalismo e o pós-modernismo vigente.
Podemos assim afirmar que “Herzog” nasceu em um dos períodos mais positivos da vida de Bellow enquanto escritor, tendo como figura central Moses Elkanah Herzog, um individuo cujo perfil intelectual não o salvaguarda de uma miríade de sofrimentos existenciais – fruto de um “eu” conflituoso mas que, ainda assim, não elimina a sua faceta de homem dono de um charme inato.
No epicentro de um turbilhão emocional, Herzog vê a existência desmoronar. Sente-se um escritor falhado, um académico falido, um pai errante, um amigo ausente, um amante absurdo. O seu casamento com Madeleine, sua segunda mulher, acabou e, na ressaca desse problema, depara-se com o envolvimento da ex-esposa com Valentine Gersbach, o seu melhor amigo.
Numa tentativa de se agarrar ao pouco que lhe resta, Herzog investe o seu espírito de sobrevivente através de uma raiva concentrada em forma de cartas, que escreve de forma compulsiva a amigos, inimigos, famosos, desconhecidos, vivos ou falecidos. Ainda que essas missivas nunca cheguem aos seus destinatários, Herzog serve-se das mesmas como forma de redenção e constrói as mesmas sob uma peculiar visão da humanidade, que o cerca através de uma reflexão que condensa as esferas públicas e privadas.
O teor das cartas varia entre reflexões políticas, religiosas, filosóficas e culturais. É notório um sentimento autobiográfico em “Herzog” e o mesmo pode ser verificado, por exemplo, na questão do número de casamentos, pois tanto Bellow como Herzog contrariam matrimónio por duas vezes.
Ao percorrer avidamente as páginas deste livro, o leitor é deliciosamente confrontado com pontos de vista que resvalam entre a racionalidade e a instabilidade de um ser à beira do colapso emocional. Valha-nos a inebriante capacidade narrativa de Bellow que consegue transformar um sentimento de autorridicularização em uma forma de válido compromisso.
Ainda que a vida de Herzog seja sinónimo de uma desintegração progressiva, o humor (negro) com que a mesma é relatada abafa qualquer ponta de desistência, afirmando-se como um bonito labirinto escrito que assume a forma de resposta ou tentativa de colocar uma ordem lógica em uma mente momentaneamente estupidificada perante a fragilidade dos problemas que enfrenta.
A luta contra a solidão é, sem dúvida, uma das maiores batalhas que um homem como Herzog tem para enfrentar mas, por vezes, a vida como sinónimo do relacionamento entre homem e mulher pode oferecer surpresas inesperadas. A dicotomia entre personagens, por exemplo, como acontece com Madeleine e Ramona, traça uma tangente entre o compromisso e a realização, entre o possível e o meritório.
Imbuído sobre uma perspetiva masculina (e não machista) “Herzog” é um livro extraordinário e o seu personagem principal tem tudo para ficar na memória dos leitores. A paixão com que se devoram as páginas desta obra tem como fundamento maior um misto de incompetência e absurdo, predicados que elevam a condição humana a um permanente limbo existencial.
Sem Comentários