“A atenção às grandes questões da sociedade contemporânea“; “a opção por uma construção narrativa atenta à polifonia de vozes e aos seus modos distintos de convocação de memória“; “a componente de romance de iniciação, quer individual quer colectivamente considerado na Espanha dos primeiros anos da Democracia“. Foram estes os aspectos valorizados pelo júri, constituído por Carlos Vaz Marques, Isabel Pires de Lima, João Rios e José Manuel Fajardo, que decidiu atribuir o Prémio Literário Correntes d`Escritas/Casino da Póvoa 2016 a Javier Cercas, no valor de 20 mil euros, a Javier Cercas pelo livro “As leis da fronteira”. Uma história de amor e desamor com muita violência, traições e enigmas à espreita que contou com a edição portuguesa da Assírio & Alvim.
Numa sessão oficial de abertura que contou com as habituais presenças oficiais, o grande destaque foi para a atribuição da medalha de mérito cultural a Manuela Ribeiro, organizadora do festival desde a sua primeira edição. Ela que, nas palavras do Ministro da Cultura João Soares, é de facto “o coração das Correntes“, uma mestre na arte de bem receber, capaz de reunir o melhor que a literatura tem para nos oferecer. No meio de tantos discursos oficiais, palavra maior para a escritora Ana Luísa Amaral que, para além de citar o mestre dos mestre Jorge Luis Borges, falou das Correntes como a festa dos “amantes da literatura”, e da literatura como o universo que une todas as línguas estrangeiras sob a mesma paixão.
Quanto a José Tolentino Mendonça, transformou a conferência de abertura numa gigantesca cerimónia de conversão dos mais descrentes em relação à fé. Não apenas a fé algo de superior e invisível, mas na fé na literatura e no silêncio dos livros como algo capaz de, nesta era onde impera o excesso de comunicação, servir como a verdadeira experiência humana, com o poder de reeducar os sentidos e despertar a arte de ser, de escutar, de olfactar a própria realidade.
Numa dissertação na qual foram convocadas referências de Sontag a McLuhan, de Rimbaud a Wittgenstein, de Walter Benjamin a Clarice Lispector. Tolentino apontou baterias à recuperação da sensibilidade, algo que considerou fundamental para reagir à patologia do cansaço que parece ter tomado conta da sociedade actual. O que se seguiu foi uma fantástica conferência sobre os cinco sentidos do corpo humano: o tacto como o sentido primeiro no que toca à criação, “o nosso grande olho primeiro” e que serve de ligação ao tempo e à memória; o paladar que, tal como a sabedoria, é uma “arte do desejo“; o olfacto que, “ainda que volátil, não deixa de representar um território“, atribuindo uma personalidade olfactiva aos lugares que cada um considera marcantes nas suas várias etapas de crescimento; a audição e a diversidade sonora como um lugar mágico, onde uma escuta profunda envolve o coração numa infra-linguagem capaz de, como dizia Lispector, captar o que não se ouve.
Uma viagem estonteante pelos cinco sentidos que, para além de apresentar a recuperação da sensibilidade como a arma contra a alienação, apontou a literatura como o lugar onde se encontra muitas vezes um sentido para a solidão e o património que serve de alimento eterno, onde reside o sentido comum e, muitas vezes, a iniciação pelo silêncio a uma vida inteira. Silêncio que, rematou Tolentino, deveria ser declarado património imaterial da humanidade.
“A Literatura é a catarse da existência” foi o tema da primeira mesa do festival, com moderação de José Carlos de Vasconcelos e na qual estiveram sentados Hélia Correia, Antônio Torres e Manuel Alegre. Começando por se referir ao livro “A louca jornada de um imbecil até ao entendimento”, de Plínio Marcos, Torres referiu-se ao seu livro “Essa Terra” – com apresentação nas Correntes – como aquele romance que o levou ao divã de um psicanalista, algo motivado pelas motivações de um suicida e uma catarse colectiva do esquecimento; Hélia Correia regressou à sua amada Grécia para recuperar o sentido original da palavra catarse – ou catharsis -, que se refere a um vómito, à libertação de um estado de intoxicação não alheio ao próprio corpo; Manuel Alegre referiu que a palavra não fazia parte de qualquer um dos dicionários que tinha em casa, apontando o nascimento da literatura – e sobretudo da poesia – a partir do território da caça, propício aos feiticeiros, à bruxaria e à repetição das palavras que se torna música, como a pedra do caminho imortalizada por Carlos Drummond de Andrade. A terminar, Antônio Torres – que confessou um passado de sacristão – disse sentir-se “no altar de Deus nesta festa”. O Deus Me Livro junta-se à palavra divina invocada pelo autor brasileiro: está bonita a festa na Póvoa.
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