Nascido em Bombaim no ano de 1865, Rudyard Kipling teve direito a uma estrela no passeio da fama literário – se tal coisa existisse – sobretudo pela forma como revolucionou a arte do conto. Chegado a Inglaterra com seis anos de idade, Kipling fez eco, nos seus contos, da sua vida no continente europeu, muitas vezes pintada com as cores da melancolia e, também, da infelicidade. O período que passou, por exemplo, numa casa de acolhimento, em Southsea, foi retomado de forma amarga no conto Baa, Baa, Black Sheep. Já em 1881, no United Services College – um colégio de segunda categoria destinado a filhos de oficiais do exército -, arriscou uns primeiros versos que seriam publicados, em edição de autor, nesse mesmo ano. Mais tarde, em 1899, a série intitulada Stalky and Co, apresentada como contos para jovens rapazes, seria um relato desses anos pouco felizes.
Depois de terminar os estudos Kipling trabalhou como jornalista na Índia – entre 1882 e 1889 -, altura em que produziu um conjunto de histórias, apontamentos e poemas que o tornaram famoso antes mesmo do regresso a Inglaterra, onde acabou por se estabelecer em 1889. Em 1892 casou com Caroline Balestier, irmã do seu agente literário nos Estados Unidos, tendo ambos permanecido em Vermont durante cinco anos. Foi precisamente nesta cidade que acabou por nascer a obra que universalizou Kipling, cuja primeira edição, publicada em 1894, foi um sucesso estrondoso e imediato. Já adivinharam? “O Livro da Selva” (Tinta da China, 2016 – colecção de Clássicos Ilustrados em formato de bolso e cantos redondos), pois claro. É certo que foi no regresso a Inglaterra que acabou por publicar “Kim” (1896), geralmente considerada pela crítica como a sua obra-prima, ou o livro infantil “Just So Stories”, muito aclamado pelo público, mas nenhum deles terá sido celebrado de forma tão convicta quanto “O Livro da Selva”, que regressa agora às prateleiras nacionais pela mão da Tinta da China.
Composto por sete contos, o livro ficou na memória universal sobretudo pelos três primeiros, que contam a história de Mogli, uma criança abandonada pelos pais ainda recém-nascida. Acolhido por uma família de lobos, Mogli será criado numa floresta onde irá aprender as línguas de todos os animais da selva, não escapando porém ao desejo de Shere Khan, um feroz mas não muito inteligente tigre, de o ter como requintado e exótico almoço. Para além do carinho dos lobos, Mogli contará com os ensinamentos de Balu, o urso pardo que se revela um professor muito rígido, mas também de Baguera, uma pantera negra que será a sua protectora incansável.
Para além destes, outros personagens há que ficaram gravados na história animal contada em conto: Kaá, o cobra pitão dos penhascos, que dorme um mês inteiro depois de ter comido (provavelmente um bom número de cabras); os Bandar-log, uma tribo de macacos com amnésia permanente, que inventaram uma máxima capaz de lhes dar algum alento para tanto esquecimento: “Aquilo que os Bandar-log pensam agora é o que a selva pensará mais tarde.”; ou o Lobo Irmão Cinzento, que após Mogli ser expulso do reino animal irá junto do mundo humano avisá-lo de que Shere Khan planeia a sua vingança, permitindo a Mogli puxar pela massa cinzenta para tentar apanhar o tigre desprevenido.
História sobre valores e regras, “O Livro da Selva” é também um livro sobre a luta individual pelo reconhecimento, mesmo que para o atingir seja necessário abandonar tudo aquilo que foi ensinado – e aprendido – durante uma vida inteira. Mogli é um verdadeiro sobrevivente, rejeitado pelos humanos e posto em causa pelos animais por não ser um deles, acabando por encontrar, nos perigos e silêncios da selva, a sua verdadeira morada.
Há, porém, muito mais que apenas Mogli neste pequeno grande livro: em “A foca branca” somos transportados para um lugar chamado Novastoshnah – ou Cabo do Nordeste -, onde uma rara foca branca vai tentar escapar ao destino da espécie de acabar assassinada por mãos humanas; ou o espantoso conto intitulado “Rikki-Tikki-Tavi”, a história de uma grande batalha que opôs um manguço – “parecido com um gato pequeno no pêlo e na cauda, mas mais semelhante à doninha na cabeça e nos costumes” – a um temível casal de cobras capelo. Ao retratar de forma deliciosa o mundo dos bichos, Rudyard Kipling mostra-nos também, nestes preciosos sete contos, o muito de animal e selvagem que guardamos dentro de nós.
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