Já não se fazem bilhetes assim, apetece dizer. Num momento em que a caixa de memorabilia musical começa a ser feita de bilhetes que se guardam como gémeos, onde apenas o nome do artista/banda vai mudando sempre no mesmo negro de fonte de letra regular, a Nariz Entupido serviu àqueles que assistiram ao concerto de Hannah Epperson na passada quinta-feira um ingresso mágico, com o ar de um daqueles bilhetes raros e dourados que permitiram que cinco crianças visitassem, com direito a uma visita guiada e tresloucada, a fábrica de chocolate de Willy Wonka. Aliás, elogios sejam feitos a esta pequena associação cultural que, com um tremendo bom gosto, uma grande iniciativa e, também conhecedora da arte da persuasão, tem trazido a Portugal artistas de qualidade máxima que, de alguma forma, vão permanecendo nas sombras. Foi o caso, por exemplo, de Daniel Knox em 2015 e, agora, de Hannah Epperson, a americana que acaba de editar o EP “//upsweep”, composto por cinco faixas num registo mais pop e dançável, que não serviu de moto a um concerto mais intimista, classicista, experimental e, por que não dizê-lo, belíssimo.
O aquecimento foi feito a brincar ao pedra, papel, tesoura, que aqui conheceu algumas variantes no que diz respeito às regras. Paper Beat Scissors – ou, em bom português, o papel ganha à tesoura -, foi a nova regra trazida ao Lusitano Clube por Tim Crabtree, um brit radicado no Canadá que, com uma voz fantasmagórica e, ao mesmo tempo, crua e melancólica – enquadrada em loops instrumentais e vocais -, nos atira para o universo de “Diamond Mine”, o disco belíssimo construído em 2011 por King Creosote e Jon Hopkins. Um passeio pelas montanhas em dia de nevoeiro cerrado com algumas abertas de cortar a respiração.
Para além de uma voz tremenda, Tim mostrou-se exímio na arte da conversação, fosse para falar da temáticas de alguns dos seus temas – como a limitação das palavras cantada em “Watch me go” -, para dizer que na próxima visita a Portugal seria fluente na nossa língua – atirou bem mais de meia dúzia de palavras certeiras e inesperadas – ou para dizer que os primeiros cinco que lhe comprassem um disco no final da noite teriam direito a um ovo mole, trazido de Aveiro na sua primeira paragem musical no nosso rectângulo. Um aquecimento que teve o calor de um concerto por inteiro.
Hannah Epperson, pelo contrário, tratou de atirar desde logo com a fluência linguística às urtigas: “O meu português é uma merda”, a que se seguiu um sempre necessário “três cafés”. Acompanhada da sua estação de loops, de um violino e de um pequeno teclado onde disparava batidas, Hannah ofereceu uma actuação entre o experimentalismo e o lado mais clássico do violino, a que se juntou uma voz rouca e frágil, qual funâmbulo caminhando sobre cordas vocais sem rede à vista.
Entre a boa disposição e algum nervosismo, Hannah brindou os presentes com um concerto feito de muita técnica e ainda mais virtuosimo, conseguindo, igualmente, o incrível feito da transformação: nas suas mãos um violino é também uma guitarra, um baixo, um microfone e, nalguns casos, uma espécie de djembê.
Terminando cada canção como quem acaba de despertar de um sonho, quase sempre escondida atrás da sua cabeleira a fazer lembrar uma Rapunzel sem torre, Hannah mostrou-se encantada com a santa trindade portuguesa que havia descoberto em poucos dias – vinho, comida e boa companhia -, afirmando-se disponível para aceitar, no final da noite, uma proposta de casamento que lhe permitisse ficar cá para sempre. Aliás, conversa e boa disposição nunca estiveram em falta durante o concerto, fosse para falar da transformação de uma lagarta em borboleta, do confronto com o espelho depois de um par de gins a mais – “meu deus, o que foste fazer?” – ou para perguntar sobre a equipa portuguesa de ultimate frisbee, o seu desporto de eleição – “não vieram, devem estar algures a fumar erva”.
Para o final ficou “Farthest Distance”, canção tocada praticamente às escuras e a tocar o épico, antecedida pela tirada mais séria e profunda de Hannah: “É fácil estarmos no centro do nosso universo, e isso é uma grande tristeza”. Para os presentes no Lusitano Clube, pelo menos durante uma hora, o único universo que existiu – ou pelo menos a sua estrela mais brilhante – chamou-se Hannah Epperson. E isto no dia em que as ondas gravitacionais de Einstein foram finalmente descobertas pela ciência moderna. Há coincidências verdadeiramente felizes.
Fotos de Luísa Velez.
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