Será possível que um livro onde a personagem principal passa mais de 150 páginas deitado na cama praticamente alcance o cume da criação literária e imortalize o tempo em que foi escrito? Ivan Gontcharov (1812-1891) provou que tal é bem possível, com um romance centrado no muito caricatural “Oblomov” (Tinta da China, 2015), “um homem de trinta e dois ou trinta e três anos, de estatura mediana, bem-apessoado, de olhos cinzentos-escuros, mas com uma total ausência de qualquer ideia precisa, de qualquer concentração nos traços do rosto. O pensamento voava-lhe pelo rosto como um pássaro livre, esvoaçava nos olhos, pousava nos lábios entreabertos, ocultava-se nas rugas da testa, depois desaparecia por completo e então parava-lhe em todo o rosto a fraca luz uniforme da despreocupação. Essa despreocupação passava do rosto para a postura de todo o corpo, e até para as pregas do roupão.”
Oblomov parece encarnar a visão da alma russa da época, impregnada de indolência, indecisão e avessa ao espírito prático. E, claro, preguiçosa, uma característica que Oblomov exibe orgulhosamente como um estandarte. Tendo na suavidade “a expressão dominante e fundamental não apenas do rosto mas de toda a alma“, Oblomov é receptáculo de uma estranha obesidade, com um corpo que “parecia demasiado efeminado para um homem.” Para ele, estar deitado fica longe de ser uma necessidade: é, antes, um estado natural.
E é numa casa suja e em desalinho, muito por culpa de Zakhar, um velho criado que baixou a guarda depois de muitos anos a assistir à derrocada do nome e de grande parte da fortuna familiar, que Oblomov vê entrar os muitos visitantes, recebendo-os quase sempre da mesma forma – “Não se aproxime, você vem do frio” -, preocupado com uma cartas desagradáveis que chegaram e que têm a ver com a má administração da sua propriedade, que este nunca visita e que, anualmente, lhe vão entregando cada vez menos receitas.
A galeria de personagens que enchem o livro até que Oblomov se decida levantar da cama é de se lhe tirar o chapéu: Vólkov, “um jovem de vinte e cinco anos, a irradiar saúde, de faces, lábios e olhos risonhos. Fazia inveja olhar para ele. (…) Ofuscava pela frescura do rosto, da camisa e do fraque”; Sudbínski, chefe de repartição, “senhor de fraque verde-escuro com botões brasonados, muito bem barbeado, com as suiças escuras a enquadrar equilibradamente o rosto, uma expressão cansada mas calma e pensativa nos olhos, um rosto muito gasto mas com um sorriso sonhador”; Penkin, “um homem muito magro, moreno, todo suiças, bigode e pêra. Vestia com uma negligência estudada”; Alekséiev, um homem que ouve e vê aquilo que os outros já ouviram e viram, “uma espécie de indício incompleto, impessoal, da massa humana, um eco abafado, um reflexo impreciso dela”; e ainda Stolz, o verdadeiro contraponto de Oblomov, o seu amigo de longa data e o único em quem Oblomov verdadeiramente acredita. Será Stolz o responsável pelo virar de avesso da vida de Oblomov, forçando-o a sair do seu retiro para aproveitar a vida, dando-lhe a conhecer as aventuras e desventuras do amor.
Ainda que seja um clássico temporal, muito cingido ao espírito da época em que foi escrito, “Oblomov” alcança a intemporalidade ao retratar, de forma singular, a alma humana – e, neste ponto, não apenas a alma russa mas a de todo o planeta. Um pouco como as estações do ano vão dançando alternadamente, “Oblomov” desenha um círculo perfeito sobre a vida, começando e terminando com aquilo que ela tem de mais nobre e ingénuo: o sonho.
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