“Uma corda estica até ao seu comprimento, mas pode passar uma vida dobrada sobre si mesma, enrolada para dentro. Uma corda comprida pode não passar de um pequeno rolo. A nossa vida também é assim, como uma corda. Por vezes, estende-se sobre o abismo, por vezes está enrolada na arrecadação. Pode unir dois lugares distantes ou ficar arrumada, dobrada sobre si mesma.”
Homem de muitos ofícios – escritor, ilustrador, músico e cineasta –, Afonso Cruz é apontado como “uma das vozes mais criativas da nova literatura em língua portuguesa”, tal como referiu Mia Couto, e as críticas positivas não deixam de chegar, tanto por parte da imprensa nacional e internacional como, também, dos leitores.
Seja pelo título provocador, a quem não conhece a história, seja pela escrita de Afonso Cruz, a verdade é que a edição de bolso e limitada de “Jesus Cristo Bebia Cerveja” (Alfaguara, 2015) veio mesmo a calhar. Se há leitoras que se queixam de não conseguirem levar livros nas malas, então a desculpa acabou. A imagem provocadora da primeira edição foi substituída por outra mais simples, mais clean mas nem por isso menos bela.
Várias personagens dão vida à história de “Jesus Cristo Bebia Cerveja” numa pequena aldeia alentejana. Toda a acção decorre à volta de Rosa, uma simples jovem rapariga sem muitos estudos e com o estranho hábito de chupar pedras para relembrar, com essa dor, certos momentos do passado. Sem notícias do paradeiro da mãe e com a morte do pai e do avô, Rosa vive para a sua avó Antónia. Uma pobre mulher levada pela idade, com os pés inchados e as “veias a rebentarem de azul”, que passa grande parte do seu tempo a dormir.
Toda a vida desta jovem alentejana é envolvida numa aura de desgraça, desde que vai trabalhar como empregada doméstica na casa de Santos & Santos – com o patrão envolvido com a outra empregada, a doce Matilde – até à altura em que começa a colocar de lado o amor pelo pastor Ari.
Para dar mais vida à história, outras personagens desfilam no enredo: o professor Borja, unicamente apaixonado pela ciência; a milionária inglesa Miss Whittermore; o pastor Ari. Tudo muda a partir do momento em que Rosa confessa que o grande desejo é levar a avó Antónia até Jerusalém, mas falta-lhe dinheiro e saúde à avó para fazer a viagem. É a partir daqui que todos os planos de Borja, perdidamente apaixonado por Rosa apesar da grande diferença de idades, começam a ganhar vida para transformar o Alentejo na terra santa porque, na verdade, “Borja está entusiasmado e nem sente a mentira. Na verdade, acha que todas as geografias se sobrepõem. O sagrado está em todo o lado. Não tanto pelo valor intrínseco, mas pelo valor que lhe damos”.
Não fosse fenomenal a escrita de Afonso Cruz e podíamos estar perante uma história crua, quase impossível e sem qualquer interesse para o leitor. Mas as páginas esvoaçam, sem se dar conta, em capítulos curtos, e a vida que é dada a todas as personagens acaba por não passar despercebida. Vida essa que ganha contornos logo nas primeiras páginas, graças à ironia colocada, quando a pequena Rosa confessa ao padre que a mãe tinha sido substituída pela Virgem Maria: “O padre, horrorizado, admoestou-a e chegou a puxar-lhe as saias e a dar-lhe umas palmadas no rabo. Castigo esse que o clérigo apreciou e passou a prodigalizar com alguma frequência”.
Sem querer cair em rótulos, “Jesus Cristo Bebia Cerveja” é um drama com alguns momentos de comédia – e humor negro – pelo meio. Se a impossibilidade que atinge o final pode ser um elemento de afastamento para alguns leitores mais realistas, poderá também encantar uma grande maioria. Afonso Cruz veio para ficar e o melhor é dar ouvidos a um escritor tão talentoso e multifacetado. Que o tempo se encarregue de o tornar imortal num futuro próximo, como o fez com outros grandes escritores portugueses.
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