“I’m Not a Pop Star”, canta David Bowie na faixa homónima do seu último disco, “Blackstar” (2016, Columbia). De facto, ao longo da sua carreira de cinco décadas, o camaleão nunca foi fácil de classificar. Quando a imprensa musical tentava colá-lo a um determinado estilo musical, já Bowie tinha partido para outra, transportando a sua sonoridade e a sua imagem em direcções novas e surpreendentes.
Será difícil falar de “Blackstar” sem falar do contexto que o rodeia – o disco foi editado a 8 de Janeiro, dois dias antes da morte do cantor. Sabemos agora que Bowie sucumbiu a um cancro no fígado que o atormentava há ano e meio, e sabemos também que o desfecho não terá sido inesperado para si.
O produtor do álbum, Tony Visconti, amigo de longa data de Bowie, já confidenciou que o cantor sabia muito bem que ia morrer em breve, e que o álbum seria provavelmente o seu derradeiro trabalho. “A sua morte não foi diferente da sua vida – uma obra de arte”, afirma Visconti. “Ele fez Blackstar para todos nós. Foi o seu presente de despedida”, disse ainda.
Em 2013 assistimos a um regresso inesperado de Bowie com “The Next Day”, álbum que se seguiu a um perturbante hiato de uma década. Apesar da sua vitalidade, é um disco muito revisionista, onde encontramos ecos dos êxitos criativos de Bowie da década de 70.
“Blackstar” é um animal diferente: o cantor recrutou um crepitante quarteto de jazz para o acompanhar nas sessões de gravação – Donny McCaslin no saxofone, Jason Lindner nas teclas,Tim Lefebvre no baixo e Mark Guiliana na bateria. A vibrante performance da banda, em conjunto com a produção de Tony Visconti, transportam estas sete faixas para um mundo que apenas Bowie poderia inventar.
Menos acessível que “The Next Day”, “Blackstar” é o álbum mais distante da pop na longa discografia de Bowie. A incorporação do jazz na sua linguagem foi inspirada pelo que fez Kendrick Lamar no álbum de 2015 intitulado “To Pimp a Butterfly”. Outras influências citadas incluem o hip-hop experimental dos Death Grips, e o duo de música electrónica Boards of Canada. O álbum conta ainda com uma participação discreta de James Murphy, dos LCD Soundsystem, em duas músicas. “Bowie estava determinado a fazer algo de completamente diferente” diz Visconti. “O objectivo, de alguma forma, era evitar o rock n’roll”.
A longa faixa título “Blackstar” – com 10 minutos – leva o ouvinte numa viagem cheia de texturas e excentricidades. A sonoridade lúgubre e atmosférica é reforçada pelo surreal videoclip, no qual Bowie aparece vendado e com botões como olhos. Ao longo da música, o saxofone de McCaslin acrescenta uma vibrante tensão dramática, em paralelo com a pulsação rítmica da bateria. A letra, indecifrável, apresenta as vozes de diferentes protagonistas. O conjunto é esquisito, dissonante, claustrofóbico, e parece de facto um som novo para Bowie.
Balada com uma tonalidade gótica, o espantoso “Lazarus” assenta num forte ritmo de bateria e na voz particular do cantor. Será a faixa mais reveladora do estado de espírito de Bowie, embora permaneça tão enigmática e vaga como o resto do disco. “Look up here, I´m in Heaven”, começa a canção. “I’ve got nothing left to loose”. O videoclip mostra Bowie numa cama de hospital e, noutro plano, a escrever desesperadamente, até entrar num armário de madeira.
“Sue (Or In a Season Of Crime)” já fazia parte de “Nothing has Changed”, álbum-compilação de 2014, mas aparece aqui com uma nova roupagem – acrescentou-se um frenético ritmo drum n’bass que empresta uma energia tensa e compacta ao tema.
“Where the fuck did monday go?” pergunta Bowie em “Girl Loves me” sobre uma ameaçadora percussão hip-hop, agressiva e cheia de groove.
“Dollar Days” é a única música que Bowie escreveu directamente no estúdio, uma balada mais convencional e melancólica. Todo o álbum evita os estereótipos do rock ainda que, sob a influência do jazz, o sentido melódico de Bowie não se tenha perdido. O saxofone de McCaslin nunca resvala para o piroso – em todo o disco é sempre uma mais-valia e, nesta música, não é excepção.
O álbum termina em alta com “I Can’t Give Everything Away”, uma faixa cuja letra consolida o enigma que é “Blackstar”. Bowie não pode revelar tudo, tem de permanecer ambíguo e enigmático, caso contrário não seria Bowie.
Temos assim um álbum com sete faixas densas e complexas, por vezes brilhantes, despachadas em 42 minutos. Teria sido fácil para Bowie fazer um novo “The Next Day”, satisfazendo os nostálgicos com um disco mais calculista. “Blackstar” é tudo menos isso. É um álbum espantoso, e já era espantoso antes de se ter tornado um epitáfio.
As últimas fotos de Bowie mostram-no a rir, elegantemente vestido. A forma como planeou o seu próprio Requiem é assombrosa: fê-lo exactamente como quis, como só ele o poderia fazer. Até na morte Bowie foi genial.
Sem Comentários