“Foi um processo longo, uma verdadeira oficina”, disse Clara Ferreira Alves em entrevista à Renascença sobre “Pai Nosso” (Clube do Autor, 2015), um livro há muito esperado e pensado antes dos trágicos acontecimentos de 11 de Setembro em Nova Iorque. Se houve uma verdadeira carpintaria por detrás do primeiro romance da escritora, como faz questão de referir na maioria das entrevistas dadas, o resultado está à vista a cada página. Complexo, estruturado e humano são talvez as melhores palavras que o descrevem, com o medo a imperar na maioria dos parágrafos – e, tal como Clara escreve ao longo do enredo, é preciso prestar atenção a todas as coisas que acontecem pela primeira vez.
Uma certa especialista de Estudos do Médio Oriente, “uma académica dessas que passam pela vida a escrever teses que ninguém lê e a papaguear teorias de que ninguém quer saber”, decide explorar a história do Fantasma, uma conhecida fotógrafa de guerra. Dentro das paredes de um hotel de Bagdade, Marie começa a contar as suas histórias de guerra e do coração. Memórias divididas entre Israel, Iraque, Afeganistão, Síria, Marrocos, Paris, Lisboa e tantos outros lugares que se entrelaçam num ponto comum em todo este “Pai Nosso”: o terrorismo.
O terror silencioso ganha vida à medida que Marie conta a sua história. Ouvido através de um gravador – através do rewind, play, forward – e com saltos temporais, dependentes da vontade da especialista ao escrever a obra sobre O Fantasma, a vida da protagonista mostra-se com amargura e desgosto. Uma amargura sentida durante a sua infância por não ter nascido rapaz, contrariando os desejos de um pai danificado pela Guerra Colonial, marcada pela morte da mãe e por uma infância em Benfica, numa casa ao lado da linha do comboio. “Não tenho história porque venho de lugar nenhum”, conta Marie sobre a vida em Campolide e, mais tarde, na mudança brusca para a casa de Benfica.
Uma juventude dentro de romances cor-de-rosa impostos pela tia e com o Cristianismo a acompanhá-la, foram motivos suficientes para a levarem para a guerra, longe de Lisboa. Para trás ficou a única amiga que escolheu para ser a sua família: a doce Beatriz, uma mulher pura e inocente, apanhada pelas consequências do terrorismo na máquina política à mesa do jantar – o reverso de Marie. Os opostos atraem-se.
Sobre Tariq, tantas vezes referido como o terrorista do romance, quase nada se desvenda, e é neste pormenor que permanece o verdadeiro suspense deste romance. O terror entra na casa das pessoas com demasiadas máscaras, sem segundas intenções e, tal como Clara Ferreira Alves escreve ao longo do livro, não se pode dar de comer aos pombos. Ninguém prepara o leitor para o final, para a verdadeira causa da mágoa no coração de Marie.
A riqueza deste “Pai Nosso” está, provavelmente, no passado de Marie que, ao revê-lo contando-o, está de certa forma a humanizá-lo. O livro vai para além da contextualização, plenamente investigada e estruturada, sobre a situação do Médio Oriente. É visível, talvez em cada capítulo, o trabalho minucioso a que a escritora se dedicou para escrever o seu romance de estreia – e, também, com o seu olhar de jornalista. Um olhar preocupado em oferecer, objectivamente, todas as informações, não fosse Clara seguidora da estratégia do escritor Graham Greene em não utilizar a adjectivação na descrição dos acontecimentos – e, por vezes, esquecendo a humanização das personagens. Da destruição provocada pela guerra ficam as fotografias de Marie e o seu vício por gin, que bebe sentada nos bares dos hotéis.
“As guerras só terminam por cansaço, nunca por acordos de paz. Os acordos de paz assinados por estadistas em mesas envernizadas de capitais europeias só chegam depois do cansaço, da exaustão, quando os traficantes deixam de ser pagos e deixam de vender. Quando os habitantes já não conseguem levantar a mão para matar.” Ámen.
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