As glândulas salivares, suor e sinusite de Slavoj Žižek fazem parte do seu carisma enquanto orador. Quem já o ouviu também conhece os sucessivos “por aí fora” (and so on, and so on, and so on) que rematam frases, porque há sempre muito mais que fica por dizer. Pode não ser um indivíduo que gera consenso, mas possui a capacidade de mesmerizar uma plateia (e uma plateia com muitos jovens, diga-se). Talvez seja isto, em parte, que leva Adam Kirsch do New Republic a afirmar que é o filósofo mais perigoso do ocidente: não só pela ironia que parece estar proibida para com os judeus, mas também pela capacidade de levar ideias de A a B, por mais sórdidas que sejam, com uma plausibilidade assustadora que toca nos nossos pontos mais sensíveis e, por consequência, sujeitos a uma irritabilidade comichosa. Ignorando o politicamente correcto, o discurso de Žižek deambula da filosofia à análise política, à crítica de arte, à psicanálise lacaniana, and so on, and so on. Estes são os tempos em que um exercício intelectual que não seja transdisciplinar é inadmissível – e são também os tempos em que só com alguma irreverência conseguimos o mínimo de atenção.
Há, em “Problemas no Paraíso” (Bertrand Editora, 2015), uma ramificação infinita dos conceitos apresentados, pese a raiz ser sempre a mesma: um abalo tão forte no sistema capitalista que causará a sua resolução. Como o subtítulo O comunismo depois do fim da história indica, Žižek acredita que o comunismo é a única solução para um mundo pós-histórico, a era da plenitude cooperativa e dos direitos humanos – o processo acumulativo, por erro, que a História nos dita deixa de ser necessário.
Especula-se que o fim da história (um conceito que fora do agrado de Hegel, e por sua vez é de Žižek, um “filósofo hegeliano”) será encaminhado pelos novos media e a forma como armazenam informação, dando espaço para uma recolha, transmissão e análise exaustiva de dados sobre eventos e conceitos, sejam de que dimensão forem, fomentando até uma acção colectiva com eficácia imediata no que diz respeito à difusão global (como se sentiu com a já mítica Primavera Árabe, pese a posterioridade ter revelado um rol de desilusões expressas pelo desejo da maioria votante).
Os grandes titãs da recolha de dados, como a Google, quando não estão ocupados a serem bons capitalistas selvagens, profetizam um mundo melhor no contexto pós-histórico, mundo melhor esse que, por coincidência ou não, se assemelha mais a uma utopia comunista que a uma distopia orwelliana – a saber qual dos dois será vindouro. E sim, Žižek está ciente da herança de Estaline ou Mao, e de toda a violência inerente aos regimes totalitários cujos extremos ideológicos se tocam. Mas vejamos, para problematizar mais aquilo que é delicado per si: na sombra do movimento pacifista Occupy Wall Street e todo o burburinho teórico que a crise especulativa de 2008 veio a trazer à mesa, o autor vê a esquerda contemporânea pactuar com o sistema vigente. “(O) capitalismo tem de ser aceite como o único jogo a ser jogado” é a forma prática encontrada, consciente da sua ingenuidade, do mui citado teórico francês Thomas Piketty. Posto de forma simples: o teor do comunismo que Žižek almeja é um estado de graça atingido por uma unificação à escala global, incompatível com as disparidades e flagelos sociais causados pela especulação financeira dos mercados e o desequilíbrio do ocidente graças à ascensão em flecha dos países que em tempos foram considerados de terceira linha, um provar do próprio veneno. Neste plano, é uma ambição para a humanidade que retira um certo peso da figura de mostrengo muitas vezes associada ao pensador esloveno.
Porém, para não o confundirmos com um qualquer santo à boa moda católica apostólica de Roma, à nobreza intelectual de Žižek juntar-se-á um sentido de humor mordaz, excepcional. Porque não haveria um livro com longas citações de textos sobejamente estudados de Hegel ou Marx, conter uma dedicatória às garotas de programa de São Paulo? Ou uma piada sobre a reacção de Cristo à passarinha de Maria Madalena? Regozijamo-nos aquando de tiradas brilhantes como a seguinte, cuja lucidez recebemos com um amplo sorriso: “Actualmente, um verdadeiro conservador é aquele que admite os antagonismos e impasses do capitalismo global, aquele que rejeita o simples progressismo, e está atento ao reverso sombrio do progresso. Neste sentido, só um radical de esquerda poder ser um verdadeiro conservador”. Contudo, não vos induzimos em erro. Acabamos “Problemas no Paraíso” com ocasionais gargalhadas e contorcionismos faciais de desaprovação, mas há maior conforto na seriedade que aguça o espírito crítico.
À semelhança dos outros ensaios do autor, bem como das inúmeras palestras, bem documentadas em linha e que preenchem a sua agenda, Žižek quer o mundo em 300 páginas. Falha redondamente e certamente saberá disso. Vai até onde a linguagem permite. Abrange múltiplas variáveis para o mesmo problema e o limite é a sua humanidade, favorecida por um raciocínio incansável: o que há depois do fim da história?
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