Charles Dickens (1812-1870), popular romancista inglês da época vitoriana, célebre por títulos como “Oliver Twist” e “Grandes Esperanças”, foi também um prolífico autor de ficção curta, a qual contribuiu para que conseguisse viver quase inteiramente da escrita e alcançar projecção global. Curiosamente, não existia, até ao início do corrente ano, uma compilação lógica desta sua produção literária – falha que a E-Primatur decidiu suprir através da publicação de uma série de seis volumes, iniciada com “As Prescrições do Dr. Marigold” (E-Primatur, 2025).
Tendo a editora optado por seguir uma ordem cronológica inversa, começando pelos últimos textos e regredindo até aos primeiros, este volume contém a ficção curta datada de 1857 a 1868, incluindo projectos colaborativos que se encontram aqui publicados em livro pela primeira vez. Segundo nos é explicado, Dickens redigia, nos números especiais das revistas que dirigiu, um ou mais contos em torno de uma personagem, um lugar, ou um tema, definindo um contexto acerca do qual convidava outros autores a escrever e editando-lhes os textos, tornando-os de certa forma seus.
A sequência de contos que dá título ao livro resulta deste tipo de colaboração, tendo como fio condutor a personagem do Doutor Marigold, um quinquilheiro de meia-idade de apelido Marigold e primeiro nome Doutor, em homenagem ao médico que o ajudou a nascer. É esta personagem peculiar que, depois de resumir-nos a sua vida, apresenta várias narrativas que compôs para a filha adoptiva – cujo teor alterna entre o sobrenatural, o cómico, o policial e a intriga sentimental com laivos de crítica social –, encerrando o conjunto com um final feliz.

Segue-se “Entroncamento de Mugby”, um entroncamento ferroviário cujas linhas representam vidas que se cruzam. Este outro exemplo de trabalho colaborativo principia com a chegada nocturna de um viajante insatisfeito com a vida. Enquanto tenta decidir qual das muitas linhas deve seguir, o local que começou por lhe parecer “morto e indistinto” acaba por se revelar o melhor para se instalar, permitindo-lhe iluminar vidas – incluindo a própria – e fazer as pazes com o passado. As histórias que se seguem à sua constituem, precisamente, diversas facetas de um todo pelo qual começa a interessar-se, e manifestam a mesma diversidade que o conjunto anterior.
Por sua vez, “Romance de Férias” é um conto longo de Dickens, publicado em quatro partes numa revista infanto-juvenil, no qual são narradas as experiências de quatro crianças durante um período de férias. O livro termina com o último texto ficcional de Dickens, o conto “A Explicação de George Silverman”, onde detectamos alguma desilusão existencial, na medida em que a simplicidade e a boa vontade do protagonista o fazem sofrer face à miséria, à hipocrisia e o mercantilismo presente em muitas relações humanas.
Nem todos os textos agradarão a todos os leitores, mas é inegável estarmos perante uma iniciativa editorial audaciosa e marcante, que proporcionará uma visão inédita da evolução de um grande vulto da literatura universal.
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