No dia em que Lisboa acordou ainda sem o seu campeão, partimos em peregrinação rumo ao Hub Criativo do Beato, sempre na esperança de dar de caras com um dos famosos unicórnios – não demos. O motivo da viagem deu pelo nome de 5L, festival literário promovido pela Câmara Municipal de Lisboa que, na edição de 2025, se propôs discutir o triângulo composto por Língua, Literatura e Inovação. No dia de encerramento, entre um debate sobre a Utopia de More – travado por dois ilustres e politicamente antagónicos convidados – e a presença do irlandês Paul “Booker” Lynch, eram vários os motivos para fazer a festa, mas a grande surpresa acabou por chegar do… México. Ficam, aos estilo de breves cartas de verão, alguns destaques. Para o ano há mais Língua, Literatura, Livros, Livrarias e Leitura – e, se puder ser, Unicórnios.

A filosofia do algoritmo será salva pelo livro
No ensaio “Não Sou um Robô” (Livros Zigurate, 2025), Juan Villoro defende que nenhum filósofo contemporâneo tem hoje tanta influência como um algoritmo, falando de uma primeira geração de gente a quem é exigido que faça prova, perante uma máquina, de pertencer à espécie humana – isto apontando, entre um mosaico de quadrados de uma fotografia normalmente de péssima resolução, semáforos ou rodas de bicicleta.
Sobre este livro/ensaio, o jornalista José Alberto Carvalho falou de “uma reflexão sobre a humanidade e o que estamos a fazer com ela”, provocando Villoro sobre se também os políticos estarão entregues a este circo de zeros e uns. “O lado binário dos julgamentos nas redes favorece as tendências extremistas. Estamos numa sociedade em que os algoritmos podem ter mais sucesso que os politicos, e onde estes próprios ajustam as suas palavras ao que vão seguindo nas redes e na opinião pública”.

Numa conversa onde se falou dos oligarcas da tecnologia americana, de tentar enganar o algoritmo desenhando playlists falsas ou elaborando listas de lugares detestáveis onde não se quer assentar pé, da nossa relação com os ecrãs ser a concretização plena da alegoria da caverna de Platão, do capitalismo tecnológico, do tráfego de dados como “um vampiro que não nos chupa o sangue mas a personalidade”, da natureza digital como uma prótese voluntária, do lado ecológico – ou da falta dele – na tecnologia, da pouca utilização que damos à memória e nos torna “mais tontos”, da defesa do humano como uma questão política, ficou no ar a grande questão: será que a Inteligência Artificial irá, no futuro, ser capaz de inventar coisas novas, tornando-se curiosa, contraditória, capaz de pensamentos complexos e de experienciar a dor da existência – aquilo que, afinal, nos torna humanos?
A terminar, José Alberto Carvalho fez-nos mergulhar no cenário de distopia levantado em “Não Sou um Robô”: e se, de repente, esta sociedade digital assistisse ao nascimento do livro? Numa dissertação emocionante que recorreu à “arqueologia das emoções”, Juan Villoro deixou um elogio tremendo ao livro impresso, descrevendo-o como a reserva última do que nos torna humanos. Afinal, “poucas coisas são mais comoventes que uma página chorada”.

Quando o sofrimento nasce, é mesmo para todos
Vencedor do Booker 2023 com “A Canção do Profeta” (ed. Relógio D’Água), Paul Lynch apresentou-se no 5L num registo com tanto de ironia como de pose, desfrutando de um copo de tinto e se – nos – divertia a falar do sofrimento humano como o pão nosso de cada dia. Numa conversa com a jornalista e crítica literária Isabel Lucas, a quem emprestou os seus óculos para que fosse lida a página da abertura do seu premiado romance, Lynch disse encarar o contar de histórias de forma muito séria, e que “A Canção do Profeta”, livro que começa com uma batida na porta, teve início num lugar que não era o seu. “Estive a trabalhar no livro errado durante seis meses. Tal como acontece numa relação que vamos mantendo, apesar de sabermos que será falhada. Essa frase esteve na minha cabeca durante anos, e não resultava”. Decidiu então partir para outra, acreditando que algo mais viria a caminho. “Faz parte do processo criativo. Escrever vem do subconsciente, pus a minha confiança nessa crença. Quando acabei de escrever a primeira página, percebi que já estava tudo lá. O lado racional não o sabia, mas o subconsciente sim. É esta a magia da arte: as melhores partes da escrita chegam da intuição”.
Onde quis chegar Paul Lynch com esta distopia made in Ireland, palavra a que habitualmente torce o nariz? “O livro é a resposta. Tem muitas camadas, não posso dizer que haja uma única intenção. Opera a vários niveis de complexidade”. Um livro que vai ao encontro da complexidade da vida, acabando por apontar a dificuldade da fuga como uma das grandes questões. “Não vivemos para nós mesmos, não somos adolescentes. Quando ouço falar que a história da guerra é um repositório de pessoas que nao souberam fugir, oponho uma outra versão: a história das pessoas que não puderam fugir”.

Quando questionado sobre o porquê de ter escrito uma história íntima, Paul Lynch levou-nos à casa da partida e à montagem da trama, puxando pela ironia dos seus galões de bom whiskey irlandês: “Todos os livros partem da experiência humana. Um escritor óbvio começaria por explicar a política do regime. O livro tornar-se-ia um comentário político. “A Canção do Profeta” tem uma dimensão política mas não é um livro político. Esta é insuficiente para explicar a realidade”.
O livro que levou para casa o Booker, escrito no presente e na primeira pessoa, assenta na experiência individual. “Quando escrevemos no presente há uma forma de criar uma ligação à incerteza do momento, um sentido de alienação. As personagens do livro não sabem o que as esperam. Movemo-nos pela escuridão segurando um fósforo, a pequena réstia do conhecimento humano perante a incerteza”.
Sobre aquilo que nos espera nesta viagem pelo planeta Terra, Lynch não tem qualquer dúvida. “Nascemos para o sofrimento, faz parte da condição humana. Estou interessado nestas questões e nas várias perdas: o amor, a família, e como as podemos recuperar. De que somos feitos, afinal?”.

Defendendo que a ficção tem a responsabilidade de vitoriar os derrotados e os perdedores, apontou o lugar do silêncio como a geografia primordial, seja na literatura ou na religião. Um estado de que ficou privado após ter vencido o Booker. “Tive muito espaço contemplativo, até vencer o Booker. Falei com alguns anteriores vencedores que me disseram que seria assim. Passei um ano na estrada, a intervalar com ver os filhos. Voltar a escrever torna-se difícil porque muda o cérebro. Era um pai e fazia o que os pais faziam, num espaco inviolável. Mais do que glamoroso, o Booker revelou-se cansativo. Tornamo-nos um bobo e o silêncio desaparece. Quando regresso a casa perdi tudo o que estava na cabeça, é como deitar abaixo um castelo de cartas”.
O livro que nasceu por acidente e se tornou uma “zeitgeist novel” viu a realidade ultrapassá-lo desde então, prosseguindo um eterno e irreparável devir. “O que aconteceu no livro aconteceu, acontece e irá acontecer. Não somos desenhados para abraçar o sofrimento do mundo, mas temos uma caixa que todos os dias nos mostra isso: um fim do mundo cíclico e permanente, que torna o apocalipse um mito. Muitas vezes olhamos para as pessoas como objectos, apesar de no grande plano sermos todos apenas um só”. O que nos resta, então, para nos tornarmos mais solidários? “A ficção é a arma derradeira para gerar empatia, compaixão. É isto que “A Canção do Profeta” faz. Não de forma política ou como missão, mas apenas mostrando o que a vida é”. Bendita literatura (e o bom vinho tinto).

Na ponta da língua mora o ofício (e a arte)
Um humorista, um cantautor e uma rapper entram numa fábrica abandonada e… Poderíamos começar assim para falar de “O Ofício da Língua”, título da conversa que juntou Nuno Artur Silva, Samuel Úria e Capicua no 5L.
Capicua, que disse ter crescido com o “património oral das canções e o lado lúdico das palavras”, falou das canções como uma construção com legos, tal como as lengalengas. “O mecanismo é o mesmo”. Música que, tal como um bom espião, é dotada de um furtivo poder de infiltração, capaz de nos “fazer cantarolar refrões odiosos”. Recordou a sua pedra de toque, o momento em que percebeu que muitas das canções de José Mário Branco ou de Sérgio Godinho, que ouvia em miúda, não eram para criancas, mas sim escritas em código – o que a fez “procurar as várias leituras de uma mesma letra”. Considera que a música de intervenção nunca parou, mesmo quando deixou de ser cool cantar em português ou se decidiu olhar para fora da realidade. “Nessa altura havia o rap das zonas periféricas. Hoje a música de intervenção é mais diversificada, tanto em temas como em causas”.

Samuel Úria, que numa fase mais adulta diz ter acentuado “o respeito pelo lado religioso da palavra”, recordou as canções infantis com que cresceu como “algo sádicas, assim como alguns contos infantis”. Amante da nostalgia, que gosta de trazer “para o presente de forma aceitável”, recordou o grunge como um reflexo da sua rebeldia de adolescente, “música visceral capaz de fazer ferver as hormonas que já estavam em ebulição. “Smells Like Teen Spirit é o hino da minha geração”. Mais do que uma preocupação ou sentimento nobre, a escrita de canções com sumo é para si uma “urgência pessoal”, mas não olha de lado para as canções com poucas calorias. “Há canções que já nascem pastilha elástica e não tenho nada contra elas. São uma pequena fruição inconsciente e distraída, chegam a ser muito boas na função de distrair a abstrair. Também há nobreza nestas canções”. Amém.

A Utopia de Thomas More é material para os Monty Python
Era uma daquelas conversa que prometia mordidelas, empurrões e insultos mais ou menos velados, mas até termos saído da sala ninguém foi ao tapete. Com Bárbara Reis a tentar pôr ordem na casa, Rui Tavares e Miguel Morgado discutiram a Utopia de Thomas More, palavra inventada por este no século XVI e que, desde então, jamais abandonou o léxico político, cinéfilo ou literário.
Miguel Morgado defende que, para lermos esta Utopia “que funda a reflexão política no Ocidente, devemos pôr de lado quem foi o autor, lendo os diálogos como se fossem diálogos platónicos”. E, apesar de uma das duas personagens dar pelo nome de Thomas More, “não se deverá atribuir a voz de qualquer uma delas ao autor”. Mais à frente, referiu-se a esta Utopia como um livro cómico, na senda de uns Monty Python mais encriptados, repleto de camadas que é preciso descascar com esmero.
Após identificar que a maior diferença na interpretação da obra será talvez as origens académicas de ambos – interpretação política vs. interpretação histórica -, Rui Tavares partiu para uma dissertação que recuou à Grécia antiga, e que acaba por marcar a sua interpretação do tempo em que esta Utopia nasce. “A minha leitura liga-se a uma geração e a uma época. Geração que (re)descobre o grego e na qual a imprensa e inventada. A Utopia de More é um texto que cria um género, e logo na própria época”. Tal como Miguel Morgado, também Rui Tavares não atribui qualquer uma das vozes do diálogo a More. Um excelente combate pela ideia de Utopia que confirmou o que já se previa – cada um terá a sua.

Esta Exposição dava um postal (ou vários)
No exterior, ocupando frente e verso de estruturas metalizadas com vidro encrustadas no solo – aquilo que se convencionou chamar de mupis -, vinte ilustradores mostraram a sua interpretação ao desafio lançado pelo 5L: representarem uma máquina imaginária, acompanhada do respectivo manual de instruções.
“Desenha-me Uma Máquina” é uma colecção de vinte ilustrações que deveria ter dado um pequeno catálogo ou uma colecção de postais. Tal como acontece com o PIM Foliano, é uma pena que todo este festim de inventividade, técnica e estilo se resuma a uma exposição efémera, sem direito a ficar gravada para a posteridade e memória futura. Estas máquinas mereciam e muito chegar ao papel impresso. Fica a dica.
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Fotos: Beatriz Pequeno (c) Festival Lisboa 5L
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