“Continuo à espera de que me peçam desculpa” (Asa, 2025), da italiana Michela Marzano, é um livro de leitura obrigatória para todos aqueles que se preocupam ou lidam com as questões da intimidade, do consentimento e da liberdade individual. Pata todos aqueles que o façam profissionalmente ou, simplesmente, se preocupem em refelectir e em respeitar o espaço do outro. Acresce, à pertinência do tema, a habilidade da escritora de o desenvolver de uma forma fácil para quem possa estar pela primeira fazê-lo, mas sem cair em simplismos que possam retirar-lhe substância, para quem lide com o tema e pretenda, por exemplo, servir-se dos exemplos dados para orientar a reflexão e a maturação que o mesmo exige.
Michela Marzano conta a história de Anna, desde a infância até aos seus cinquenta anos uma mulher informada e instruída, uma profissional respeitada que, a certo ponto da sua existência, decide dizer basta a todas as situações em que sentiu a sua vontade ignorada e à culpa pelo abuso. Em contrapartida, passa a suscitar o debate em torno das questões do respeito e do consentimento na intimidade, um debate interno pela reflexão que realiza relativamente à sua própria vivência, mas também um debate alargado presente no seu trabalho de jornalista e de professora universitária.
São vários os focos e as questões suscitados pela autora para delimitar territórios e firmar responsabilidades em matéria de intimidade. O ponto de partida é a perspectiva feminina, mas o epicentro é a confiança entre duas pessoas, independentemente das questões de género – quando é que percebem que ceder não é consentir?
Anna é uma jornalista que vive com o peso de ter descoberto que nem sempre fora dona e senhora do seu corpo, que o mesmo poderia ter-lhe sido retido por um professor, em troca de um elogio ou apoio, e por namorados que lhe cobravam uma entrega que ia além do afecto. Ao longo da vida, foi lidando o melhor que pôde com a sensação de ser alguém que merecia ou, pelo menos de certa forma, provocava o que lhe acontecia. Situações onde incluía um professor que lhe dera protagonismo, levando-a ao quadro ao mesmo tempo que lhe colocava a mão na algibeira das calças; os relacionamentos promíscuos, que se revelavam decepcionantes imediatamente após o primeiro beijo mas que levava até ao fim – porque o outro não percebia o seu desinteresse, emas a vontade de se afastar continuava, continuava e continuava, até finalmente acabar e ela poder ir; o marido violento, que lhe cobrava a intimidade como se executasse um contrato. Afinal, o que se consente quando se casa?

Em 2022, mais de 20 anos passados sobre a sua primeira reportagem sobre o tema do consentimento na intimidade e o abuso frequente de que são alvo as mulheres, Anna continuava a procurar que os jovens não ignorassem as conquistas de quem os precedeu, relembrando a coragem da denúncia, como foi, em 2017, o movimento #MeToo. Para tanto, passa a tratar o tema do assédio sexual nas suas aulas, procurando que futuros jornalistas aprendam a descortinar os acontecimentos para além do retrato facil e imediatista, levando-os a conter a avidez de apropriação do que observam, responsabilizando-os por se certificarem do consentimento das vítimas à exposição, cuja dignidade não pode ser esquecida.
“Continuo à espera de que me peçam desculpa” é uma ferramenta para reflectir sobre as várias formas de olhar o poder, que as pessoas podem e devem ter relativamente ao seu corpo e ao sexo. Nesse sentido, inclui também a polémica até agora insanável entre quem vê a prostituição e a pornografia como uma fragilização da mulher, e por quem a considera uma fonte de poder, uma escolha feita por alguém que quer ser paga por algo que deseja fazer ou que não consegue deixar de fazer. Uma reflexão em torno do respeito pelo outro, pela atenção plena, em detrimento da presunção e do sexismo, seja ele hostil ou benevolente.
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