“A todos os seres da metamorfose, aqui e lá.” É nessa fronteira vaga, vasta e muito desconhecida – mas também ténue e interior – que Nastassja Martin situa o seu “Acreditar nas Feras” (Antígona, 2023), relatando a forma como mitigou o seu sofrimento após o ataque de um urso nas gélidas montanhas da Sibéria, em 2015. Um evento impactante e esmagador que fez implodir essa fronteira, transformando-a numa criatura renascida e para sempre habitada pelo espírito do animal selvagem que a fará morar em dois mundos (talvez até num terceiro).
Martin é mulher, é bicho e é miedka, um ser híbrido, aceite, acarinhado e temido entre o povo Eveno, que ela como antropóloga estudou. Um povo que vive ainda com raízes na ancestralidade, permitindo-lhe compreender algumas das suas preocupações e reflexões sobre o curso de uma humanidade controladora que tudo deseja normalizar.
Miedka descreve com uma clareza quase palpável o momento do ataque. Revive-o. Sente-o no corpo e no limbo delirante entre dores e cirurgias. Escreve-o para superar, capturando a intensidade do embate e a subsequente transformação que dele emerge. As suas palavras transportam-nos para o coração da floresta, no abraço fatal com o urso. Para além de matukha, ela é miedka: a mulher marcada pelo urso, mas que também feriu e marcou o urso, tornando (ainda) mais importante a sua herança.
Entre cirurgias e hospitais, não esquecendo a dimensão quase geopolítica da sua recuperação, o tempo parece suspenso, e a natureza ancestral do ataque é soberana. A sua jornada de recuperação, física e espiritual, e a luta para se adaptar à nova realidade de viver marcada, é vívida e pungente. Comovedora, até, seja pela sua preocupação com a fera ou o seu desejo de regresso.
![Acreditar nas Feras, Nastassja Martin, Deus Me Livro, Antígona, Crítica,](https://deusmelivro.com/wp-content/uploads/2025/02/CAPA_acreditar-nas-feras-inside-668x1024.jpg)
Cicatrizar, reintegrar e redefinir-se são formas de regresso, tão vivas quanto as enxertias de pele e ossos. Sem esquecer o lado animal. Ela é corpo que procura unidade e união, uma “transformação estrutural. A unicidade que nos fascina surge finalmente como é, uma ilusão”. Uma ilusão com esquema próprio que fascina. A Martin e ao leitor. E aos Evenos, povo indígena da região, que interpreta o incidente como uma metamorfose.
Esta perspectiva animista desafia as concepções ocidentais de identidade, sugerindo uma conexão profunda entre todas as formas de vida e o próprio “Eu”, sem esquecer as formas de violência sobre um corpo que também se tornou objecto de estudo e de observação por todos, olhares e compaixão que não a ajudam a sarar.
“Acreditar nas Feras” é uma narrativa corajosa e introspectiva, na qual Nastassja Martin nos desafia a questionar as fronteiras construídas e que não permitem “o diálogo dos mundos”. Mais do que respostas, oferece-nos um convite para abraçar a complexidade da existência, a aceitar a “transversalidade dos devaneios” e o “emaranhado das ontologias”. Uma leitura inquieta, que nos obriga a reconsiderar a ligação entre o humano e o selvagem – ou, talvez, a perceber que essa separação nunca existiu.
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