Em 1887, Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) foi atingida por aquilo a que hoje chamamos uma depressão pós-parto. O conceituado neurologista que lhe diagnosticou histeria e prescreveu uma “cura pelo repouso” recomendou-lhe que reduzisse a vida intelectual a duas horas por dia e nunca mais tocasse numa caneta, pincel ou lápis, já que o estímulo intelectual era considerado responsável por muitos dos problemas de saúde femininos.
Em 1890, já recuperada – depois de ter tentado seguir os conselhos médicos e desistido –, responde com um conto semiautobiográfico: “O Papel de Parede Amarelo”, agora publicado juntamente com uma fabulosa utopia feminista, no livro “O Papel de Parede Amarelo e A Terra Delas” (Penguin Clássicos, 2024).
O conto tem por narradora uma mulher a quem o marido, médico, atribui uma debilidade nervosa e desaconselha a escrita. Um marido que, sob a capa da sensatez e do amor, lhe impõe a sua vontade, infantilizando a sua “pequenina” com diminutivos: “Minha pobre pombinha adoentada! […] agora é para fechar os olhinhos e fazer oó”. Todavia, na mansão para onde foi levada para passar o verão e restabelecer-se, ela anota as suas observações, sempre que os olhares vigilantes se afastam. Sem outro interesse no quotidiano, torna-se obcecada com os padrões abstractos do papel de parede do quarto, onde começa a entrever, com nitidez cada vez maior, a figura de uma mulher encolhida, que se arrasta e abana as grades que a retêm, num esforço para se libertar. Os sentidos misturam-se numa sinestesia perturbadora, e a própria protagonista confunde-se com a mulher aprisionada, num processo de estranhamento magistralmente construído, à beira do horror psicológico.
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A alegoria crítica e criativa à condição feminina é ainda mais explícita em “A Terra Delas”, publicada cerca de duas décadas depois. Aqui, três exploradores do sexo masculino decidem investigar os rumores acerca de um território remoto, habitado apenas por mulheres. Terry é o machista predador de serviço, Jeff é o romântico que idealiza as mulheres e o narrador representa o equilíbrio entre esses dois extremos. Contrariando a ideia de que uma civilização jamais se desenvolveria sem homens, encontram “um povo habilidoso e muito eficiente”, composto por mulheres capazes de se reproduzirem por partenogénese, vivendo em harmonia com a Natureza, num domínio onde reinam “a beleza, a ordem, uma limpeza imaculada e, sobre tudo e todos, uma maravilhosa sensação de conforto”. Mulheres que não correspondem aos ideais de feminilidade definidos pela sociedade daqueles homens e que abalam, com o seu comportamento e as suas perguntas, os valores que eles tomavam por seguros, levando o narrador a comentar que “o discernimento daquelas mulheres era bastante inoportuno”.
Embora peque pelo foco excessivo na maternidade, o texto é deveras eficaz no questionamento de crenças, tradições e estereótipos persistentes – e, juntamente com o conto, contribui para justificar a importância dada à autora no movimento norte-americano de emancipação feminina. Os Terrys de hoje não terão interesse em ser desafiados por este livro, mas quem sofre por ter de lidar com eles apreciará muitíssimo lê-lo.
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