Se, no final do primeiro capítulo, o leitor der por si a sofrer de tremores, alagado em suor e a abrir portadas e janelas com um súbito pavor do escuro, não se alarme. Com uma atmosfera aparentada aos melhores livros de Shirley Jackson, “Caruncho” (Antígona, 2024) é uma obra-prima assinada por Layla Martínez, que através das tradições familiares e das heranças (in)desejadas nos faz mergulhar numa Espanha a sorver os últimos vestígios do franquismo, num lugar agreste onde às mulheres está reservado o pior dos destinos.
A mãe da protagonista é uma presença omnipresente, levada em adolescente a entrar num carro para nunca mais aparecer. Sobre a casa que serve de ninho a este assombroso romance, dizia que “nos faz cair os dentes e nos seca as vísceras”. É à jovem protagonista, que regressa a casa depois de uma saída de prosão preventiva, que é confiada a missão de contar a história, uma missão partilhada com a sua avó, que entre outras coisas tira uma radiografia familiar com relatório, repetindo uma ladainha genealógica: “Todas as famílias têm os seus mortos debaixo das camas, a diferença é que nós vemos os nossos”.
Com os jornalistas acampados à porta, é entre as quatro paredes de uma casa onde há monstros que dormem dentro de panelas gastas que o leitor se verá encerrado, nesta história que olha para o abandono rural, as fracturas de uma guerra, as diferenças de classes, o sistema patriarcal imposto, o papel de figurante atribuído às mulheres e o caruncho que guardam dentro de si – uma erva daninha que não as larga, essa “comichão no peito como um cavalo prestes a encabritar-se mas que não o faz, que nunca faz, e que no fim não foge a galope”.
Um dos melhores romances de 2024 publicados em Portugal, e que serviu de entrada ao projecto Sementes de Dissidência, financiado pelo programa Europa Criativa, da União Europeia, que apoia a circulação, a tradução, a distribuição e a promoção de obras literárias europeias. Até 2026, cinco livros com “temas prementes para tempos incertos” vão estimular conversas e actividades no espaço público, em comunidades rurais no interior do país, em escolas, bibliotecas municipais e livrarias, entre adolescentes, idosos e grupos vulneráveis, como a população prisional e mulheres marginalizadas. Está de parabéns a Antígona.
Sem Comentários