É pacífico definir Samuel Úria como um dos mais respeitados compositores portugueses da sua geração. Da sua pena já saíram canções para artistas como Ana Moura, António Zambujo e Cláudia Pascoal. Além disso, ostenta uma prolífica carreira a solo e uma identidade artística particularmente marcante. Não é (ainda) um artista de massas, mas quem segue a sua música fá-lo com uma devoção quase religiosa. As canções, repletas de jogos de palavras e múltiplas referências, são testemunho de uma criatividade transbordante.
O cantautor de Tondela está de regresso com um novo disco chamado «2000 A.D.». Lançado a 6 de Dezembro de 2024, sucede a «Canções do Pós-Guerra», de 2020, e conta com a produção de Miguel Ferreira e do próprio Samuel Úria.
O Deus Me Livro percorreu o disco faixa a faixa.
2000 A.D.
Abrimos com a faixa-título, a canção que dá o tom para o resto do álbum. É uma viagem reversa aos anos 80 e 90, altura em que a chegada da viragem do século parecia trazer a esperança de um futuro a estrear, cintilante como uma moeda nova. Passados 25 anos, essa esperança de progresso vive dias amargos: há ainda muito por mudar e muito mudou para pior. A faixa corre sobre uma batida densa e ecos de reverb na guitarra. Uma cascata de sintetizador dá o balanço até ao refrão, onde a canção explode em coros e harmonias vocais gospelianas. Algum dia chegaremos ao ano 2000?
Canção de Águas Mil
Ao ritmo da guitarra acústica e da percussão líquida — como se fossem gotas de água a cair —, Samuel desfila uma canção anti-fascista. Nestes dias em que ressurge um certo saudosismo da mordaça, esta faixa serve como contra-veneno. A mestria de Samuel Úria não está apenas nas poesia das letras: aparece na filigrana fina dos arranjos, tecida com coros e harmonias certeiras. Uma marcha fúnebre com final feliz.
Era de Ouro
O autor não esconde a influência quando canta com desfaçatez “Não sou dos Blur, eu sinto-me é vil metal”. Assumidamente de protesto, é uma das faixas mais eléctricas do disco — desfila a energia e o fulgor da guitarra de «Song 2», enquanto visa os perigos do capitalismo e dos “ouros que derretemos para estátuas de touros”.
Um Adeus Português
A inspiração vem do poema homónimo de Alexandre O’Neill: Samuel Úria parte dos versos originais para uma criação poética de sua lavra, num dos melhores momentos do disco. Está tudo afinado ao pormenor, com uma classe a toda a prova: a letra inspirada, os suaves arranjos de cordas, a melodia tocante e a produção de Miguel Ferreira. Grande momento de pop clássico — no melhor sentido.
Daqui Para Trás
Baixamos a âncora num porto de calmaria algures numa praia brasileira. Este curto e luminoso dueto com a jovem cantora brasileira Carol pode apelidar-se de «canção de amor». Mas é apenas uma banal e corriqueira balada? Claro que não. Vinda de quem vem, é abordada de uma forma mais oblíqua, mais poética, mais críptica, a la Úria. É uma faixa despida, lo-fi, que deixa brilhar a guitarra e as duas vozes tisnadas pelo sol da manhã.
Kushisabichii
Os japoneses têm um jeito inato para criar conceitos certeiros. «Kushisabishii» é aquela sensação de ter saudades de ocupar a boca com comida. Não é propriamente fome, ou apetite, é algo mais subtil. Este tema, por outro lado, não tem uma onça de subtileza. Trata-se de uma extravagância sonora (alarve e glutona, assegura o autor) que mete salsa, rock alternativo dos anos 90, o «Loser» do Beck e a voz mais clássica da convidada Margarida Campelo, numa salada de teclas, percussão e loucura.
Quem me Acende a Voz
O disco está repleto de influências de música gospel, mas é nesta canção que as descortinamos com mais evidência. A faixa, encharcada nos espirituais americanos (com pronúncia de Tondela), é uma canção celebratória, polvilhada pela força da fé e do mistério. Os coros são, como sempre, excelentes, e elevam o tema a grandes alturas.
1998
Banda sonora ideal para uma variação beirã de «O Bom, o Mau e o Vilão», transpira Ennio Morricone por todos os poros — não falta sequer o assobio melódico, interpretado por Manuela Azevedo, a excelsa vocalista dos Clã. A composição majestosa convoca imagens de pradarias sem fim, saloons poeirentos e botas enlameadas. A letra, contudo, leva-nos para um passado bem português. Samuel situa a canção no seu baile de finalistas, em 1998, e discorre sobre a sua «Babel» de final dos anos 90 — Tondela, a cidade em que cresceu.
Xico da Ladra
É uma elegia assumida, uma homenagem terna de Samuel Úria ao seu amigo João, vulgo «Xico da Ladra», que faleceu em 2020. Pérola de simplicidade e bom gosto, é mais um testemunho da destreza do cantor com as palavras, que volteiam em movimentos circulares, acompanhadas por uma superbíssima guitarra acústica. Acaba assim o disco num tom de esperança e amizade — a humanidade não tem conserto, mas haverá sempre indivíduos notáveis.
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