Levou para casa o National Book Award em 2022, e é bem capaz de ter sido um dos melhores romances publicados no ano corrente em Portugal. Escrito pela norte-americana Tess Gunty – foi o seu romance de estreia -, “O Contrário de Nada” (Alfaguara, 2024) é um livro de uma invenção tremenda, com tanto de amável como de violento, com diálogos esculpidos letra a letra e que nos oferece a possibilidade do deslumbramento.
A magnética protagonista deste romance dá pelo nome de Blandine Watkins, obcecada por místicas católicas – como Hildegarda de Bingen – e “a óbvia etichização do sofrimento”, habitante de um complexo habitacional de baixo custo onde moram estranhas personagens: no C2, mostrando que são mesmo as mulheres a mandar no mundo, há um homem de 60 anos que, muito provavelmente, deterá o recorde de bad reviews nas aplicações de encontros; no C10 há um adolescente muito dado ao desporto, que não falha um dia no seu esquema de 30 polichinelos seguidos de 30 flexões; no C8 há uma mãe que “desenvolveu uma fobia aos olhos do seu bebé”; no C2 vive Joan, uma mulher habituada ao silêncio da solidão; o C6 é o lar dos septuagenários Ida e Reggie, que fumam incessantemente enquanto escutam as notícias numa televisão que parece gritar; e há também o C4, o quarto onde os planos traçados se tornaram azedos, e que acabou por juntar “três rapazes adolescentes. Uma rapariga adolescente. Um desconhecido. Uma cabra. Um vizinho”.
Todos eles vivem em Vacca Vale, uma cidade para lá da decadência, que se vê alvo de um Plano de Revitalização, cuja comemoração se vê interrompida quando “26 bonecas de vodu caíram do tecto, bonecas feitas com paus e barbante. Tinham xis no lugar de olhos”.
A primeira e curta parte deste algo tresloucado romance apresenta-nos aos moradores deste prédio, que parece reflectir de alguma forma o mundo a uma escala de maquete. É lá que vemos Blandine Watkins no momento em que, com 18 anos, abandona o seu corpo, um desejo há muito por cumprir. Na segunda parte recuamos até dois dias antes, acompanhando Blandine numa ida à lavandaria local, questionando-se “se a iminente actividade nocturna a revelará como uma pessoa moral ou imoral”.
Para além dos moradores do prédio, há uma outra galeria de personagens que poderiam bem ser pendurados nas paredes de um museu: Moses Robert Blitz, filho de Elsie Blitz, autor de um blogue sobre saúde mental que chega a Vacca Vale com uma missão bem estudada; James Yager, um professor de música com graves problemas éticos; ou a já referida Elsie Blitz, que vamos conhecendo através do livro de condolências e de um auto-obituário absolutamente genial. Um livro-puzzle sobre a fragilidade da existência e a busca de sentido, frenético, excêntrico, divertido e tão luminoso quanto as mais brilhantes iluminações de Natal.
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