Correu, às mil maravilhas, a estreia de Stênio Gardel como romancista. O escritor brasileiro tornou-se, com “A Palavra que Resta” (Dom Quixote, 2024), o primeiro autor lusófono a ganhar o National Book Award, um dos mais prestigiantes prémios literários norte-americanos. O romance foi distinguido em 2023 na categoria de melhor livro traduzido, com a tradução de Bruna Dantas Lobato.
O cenário é o nordeste brasileiro da segunda metade do século XX. O jovem e inocente Raimundo Gaudêncio envolve-se numa paixão com Cícero, de quem é amigo desde criança. Num dia aziago, o pai de Raimundo descobre-os no acto, reagindo com uma explosão de violência e intolerância. O universo dos dois jovens estilhaça-se de uma forma irreparável, e Raimundo é obrigado a sair de casa, fugindo à violência do pai e à recriminação silenciosa da mãe. Despede-se da irmã, Marcinha, e sai para o mundo.
No bolso, uma carta. As palavras que Cícero escreveu para si não mais o deixaram, ainda que, analfabeto, as transportasse como um código indecifrável, um enigma que não conseguiu abandonar nem resolver. Passada uma vida, o ancião Raimundo decide aprender a ler e escrever, para soltar finalmente esse fantasma que o assombra dentro da carta há cinquenta anos.
O livro é uma lupa apontada aos pensamentos do protagonista, vozes e ecos de uma tempestade interior em permanente ebulição. Gardel tem um grande à-vontade com as frases: pega nelas e torce-as, molda-as ao seu jeito, construindo significados de uma forma impressionista e espontânea — as palavras são “esticadores de horizontes”, os rios vestem-se da “tranquilidade marmórea dos túmulos”, a voz do pai é “a voz que afaga, a voz que afoga”. O autor faz uso de frases longas, virguladas, próximas da oralidade, como um fluxo de consciência, ainda que compostas por palavras directas e secas até ao osso. Um feixe de significados, carregado de poesia instantânea e borbulhante.
É o retrato cruel de uma sociedade extremamente machista e homofóbica, uma sociedade que rasga e dilacera quem é diferente, quem foge da norma. Para além do sofrimento físico da violência, o livro mostra a jaula mental que envolvia os homossexuais, proscritos, perseguidos e humilhados a cada passo — e a necessidade de construir uma fachada de papelão, vivendo amiúde uma vida dupla.
Na família de Raimundo há igualmente um histórico de intolerância que vem de outras gerações, testemunho de uma mentalidade ignorante e retrógrada, a homossexualidade vista como um crime abjecto. O próprio Raimundo torna-se, a dada altura, num agente dessa violência, carregando a tocha ignóbil da homofobia, o futuro a fazer eco do passado ao longo das décadas, num jogo de espelhos medonho e corrosivo.
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