“Nenhum organismo vivo pode existir durante muito tempo em condições de realidade absoluta, mantendo a sanidade; há quem diga que até as cotovias e os gafanhotos sonham. Hill House, uma casa nada sã, erguia-se solitária entre as colinas que as rodeavam, com uma profunda escuridão dentro de si; existia há oitenta anos e provavelmente existiria por mais oitenta. Por dentro, as paredes continuavam sólidas, os tijolos encaixados com precisão uns nos outros, os soalhos firmes e as portas sensatamente fechadas; o silêncio cobria a madeira e a pedra de Hill House, e o que por lá andasse, andava sozinho.”
Assim começa “A Maldição de Hill House” (Cavalo de Ferro, 2023 – reedição), um romance de terror da mestre Shirley Jackson. Um olhar de 360 graus que, no momento do regresso ao ponto inicial, traz consigo uma mudança transformadora, apesar de à superfície nada parecer ter mudado.
Doutorado em Filosofia e formado em Antropologia, John Montague tem uma missão: estabelecer-se, durante um período temporal, em Hill House, com vista à publicação do seu trabalho final sobre as causas e os efeitos dos distúrbios psíquicos numa casa dita assombrada. Para tal, depois de vasculhar os arquivos das sociedades psíquicas e de antigos jornais sensacionalistas e relatórios de psicólogos, chega a cerca de uma dúzia de nomes, enviado-lhes uma carta onde eram convidados “a passar parte ou todo o Verão numa casa de campo confortável, antiga, mas perfeitamente equipada com canalização, electricidade, aquecimento central e colchões limpos. O objectivo da estadia, conforme claramente descrito nas cartaz, era observar e explorar as histórias desagradáveis que circulavam sobre a casa durante a maior parte dos seus oitenta anos de existência”.
Montague acabou por receber quatro respostas, tendo a equipa paranormal ficado constituída por duas mulheres: Eleanor Vance, que toda a vida tinha ansiado por uma experiência deste tipo. Alguém que, depois de a mãe morrer, transferiu o ódio genuíno que com ela mantinha para a irmã; e Theodora, que preferia um mundo feito de prazeres e cores ao dever e à consciência, “atributos que assentavam muito bem às escuteiras”. A esta dupla junta-se Luke Sanderson, um mentiroso e um ladrão, sobrinho da dona de Hill House, que dizia que este “tinha a melhor educação, a melhor roupa, o melhor gosto e os piores comportamentos que ela alguma vez conhecera”.
A primeira descrição da casa surge através de um aviso da mente de Eleanor, que decide ignorá-lo: “Hill House é vil, é doentia; vai-te embora daqui já”. Uma casa que se assemelhava a um “lugar de desespero, mais assustadora porque a fachada parecia estar acordada”. “Era uma casa sem bondade, jamais destinada a ser habitada, sem lugar para o ser humano, para o amor ou para a esperança”.
Shirley Jackson convida o leitor a entrar em Hill House por sua conta e risco, tecendo uma trama admirável sobre a memória, o trauma e o medo, atravessando uma galeria de personagens que, a dado momento, deverá estar em perfeita sintonia: “É mais difícil atear fogo a uma casa do que se pensa”. Terror de primeira qualidade.
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